Natural de Uruguaiana, o carnavalesco Severo Luzardo estreou no grupo especial do Carnaval do Rio de Janeiro em grande estilo: abriu a segunda noite de desfiles com a União da Ilha do Governador, escola que chamou atenção pelo capricho visual e pelo tamanho dos carros alegóricos.
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ZH conversou por telefone com o gaúcho que cresceu em meio à folia da fronteira oeste do Estado.
Você já é veterano em Carnaval. Mas deu frio na barriga estrear no Grupo Especial do Rio?
Não entrei sozinho com a União da Ilha naquele sambódromo ontem. Entrei com o Rio Grande do Sul inteiro comigo. É absurdo o que recebi de mensagens no Facebook. O Rio Grande do Sul é bairrista, ele tem orgulho, e ele vestiu o Severo, o gaúcho que veio fazer Carnaval no Rio. Hoje, são 10 carnavalescos na elite do Carnaval carioca e eu estou lá, mas com o meu Estado junto. É um processo muito fechado, difícil de furar o bloqueio. É preciso chegar pelo talento. Geralmente, o Brasil busca os profissionais do Rio para trabalhar em toda parte. Mas eu venho daí para cá. O Rio me importou, foi um processo contrário. O frio da barriga está em todo o trabalho que eu fizer, qualquer estreia. Sou um apaixonado pelas coisas que faço, pela arte de fazer figurino, Carnaval, novela, cinema. Tem muito amor envolvido. Quando você vai expor isso, obviamente tem frio na barriga, adrenalina. Isso tudo é grandioso no caso do sambódromo. Não testamos antes. Aquilo tudo tem de encaixar e ter aquela química com o público. E ter, sobretudo, uma escola feliz da vida. A União da Ilha está delirante. Há muito tempo não se viam com essa estética.
Como você avaliou seu primeiro desfile? Quais são as diferenças de estar no principal grupo do Rio?
As diferenças não são tantas, é a proporção delas. Saí do grupo de acesso, que tinha altas dificuldades financeiras, e peguei uma escola que tem as mesmas dificuldades financeiras. Fiz uma União da Ilha sem dinheiro. O que vocês viram foi uma obra de arte do desespero. Foi com muito sacrifício. E quando se tem aquele resultado estético de plástica linda, na verdade é uma junção de materiais baratos com uma cartela de cores muito estudada. Aí, você tem como fazer com que tenha as sensações dessa riqueza para burlar a falta de dinheiro. Eu já era maestro em driblar esses problemas. Não me desesperei para fazer a União da Ilha e conseguimos montar uma escola que tocou no coração de seus componentes.
Quais os desafios de trazer as raízes africanas para a Sapucaí?
Foi a própria comunidade que quis trazer esse tema. Trouxemos o candomblé Angola, porque o Brasil está acostumado com o candomblé yorubá, que é o mais divulgado. No Yorubá, temos os orixás. No candomblé Angola, temos os inquices, que são as suas divindades. Falamos de um inquice, o tempo, e montamos uma história, fomos apresentando essa cultura. Teve até um pano de fundo amoroso. Funcionou muito. O tema africano ajudou na plástica, na estética que a comunidade queria. A União da Ilha veio linda, brincante, veio solta.
O que deu certo e o que não saiu como você esperava? Teve o problema com um dos carros no final do desfile.
São as emoções que não são projetadas. Faz um projeto com a plástica e com a cor, mas a dinâmica é uma metamorfose, vai acontecendo na avenida. Não temos controle. Tivemos a infelicidade de que uma barra de direção quebrou e aí não tem o que fazer, foi um sacrifício desse carro. A adrenalina foi o até o final, a escola empolgada.
Mas esse Carnaval foi marcado por problemas, não só de carros quebrados, mas de pessoas feridas.
Foi marcado por problemas muito grandes, acho que tem de se repensar. Inclusive em Porto Alegre. Temos de tratar seriamente a questão do Carnaval, como se enfoca o Carnaval. Para mim, o Carnaval é cultural e uma cadeia produtiva da sociedade. O leite da criança chega na favela porque a mãe é costureira do meu barracão. O pai está em cima do carro fazendo uma soldagem. É uma cadeia produtiva. Quando você encara assim, você entende isso como um fator que gera economia, recursos, que movimenta dinheiro, você precisa ter aportes financeiros de liberação, de ajuda, de apoio. Quando as coisas ficam muito para o final, na pressa de fazer correndo, pode acontecer erro de projeto, de material mais barato. Isso precisa ser revisto. Os mecanismos públicos precisam estar neste repensar do Carnaval. Uma escola de samba é um fator social de um comunidade. Ela é mãe, pai, psicóloga, oferece esportes, funciona como um clube. A escola é propagadora de cultura, de entretenimento, educação e disciplina. Não podemos ver apenas como um gasto público, ver a entidade Carnaval como uma festa de bebedeira e prostituição. Não é isso, eu não trabalho para isso. Nós que fazemos Carnaval fazemos a construção de um projeto cultural para o país. Isso precisa ser repensado e apoiado. O discurso de dizer que não vai ter Carnaval para aumentar verba de saúde e educação é pífio. Você não remaneja uma verba assim tão facilmente. E um bom administrador vai dar uma boa educação para seu povo, uma boa saúde e uma boa cultura. Porto Alegre teve um discurso social, eu fiz Carnaval em Porto Alegre no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000. Estive na Praiana, fui campeão. Lembro que era disputado, havia uma paixão. O Carnaval era em um lugar de mais fácil acesso. Tenho o entendimento de que uma família vai brincar e precisa ser um lugar de fácil acesso, com segurança. Isso tudo tem de ser pensado, tem de ter aportes financeiros, o espetáculo precisa ser viabilizado. Às vezes, isso não vai acontecendo, porque as vontades políticas não encaram o Carnaval dessa forma. Aí, vai matando a tradição.
Como a sua trajetória no Carnaval de Uruguaiana o preparou para chegar ao Grupo Especial do Rio?
Comecei ainda criança, meu pai foi presidente de escola de samba, e a minha mãe, carnavalesca. Aos 15 anos, assumi meu primeiro Carnaval como titular. Não sabia que isso viraria minha vida profissional. Não existia a expressão carnavalesco. Nós fazíamos na paixão. A minha passagem na União da Ilha ontem (segunda-feira) foi um ciclo de 40 anos fazendo Carnaval. Passei por Uruguaiana, Porto Alegre e Rio.
Vai seguir na União da Ilha? Quais são os planos para o ano que vem?
Futuro começou hoje (risos). Não sei se renovo, ainda não sentamos para conversar. Estou fazendo duas novelas que não estrearam e fiz o Pequeno Segredo, longa que representou o Brasil na disputa pela indicação ao Oscar de filme estrangeiro. Agora, meu foco é o Carnaval de Os Rouxinóis, de Uruguaiana. Sou filho da casa.