A descriminalização do aborto é um tema indigesto, social e politicamente. Nas últimas eleições presidenciais, o assunto foi ignorado pelos candidatos que estavam no topo das pesquisas. Coube ao concorrente com menos de 1% das intenções de voto, Eduardo Jorge (PV), trazer à tona o tema tabu em um dos debates de TV. Mas ele tinha menos a perder com seu posicionamentos do que Aécio Neves (PSDB), Dilma Rousseff (PT) ou Marina Silva (PSB) - que, por convicções religiosas ou por receio de desagradar o eleitorado conservador, preferiram se calar.
:: ASSISTA: Documentário expõe a realidade do aborto ilegal no Brasil
:: Mulheres relatam os motivos que as fizeram decidir interromper suas gestações
No Legislativo, a coisa é diferente. Recentemente, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), afirmou que uma proposta de mudança na legislação do aborto "só irá a votação por cima do meu cadáver".
- Eu disse que sou radicalmente contrário e sou mesmo. Mas não tem nenhum projeto (sobre o tema na Câmara). O pessoal fala como se tivesse algo na pauta, e eu estivesse tirando da pauta, mas não existe isso - afirma Cunha.
A declaração do político reposicionou os grupos intitulados "pró-vida" e "pró-escolha" em trincheiras opostas. O silêncio entre as partes foi quebrado nas redes sociais, palco para a campanha #TodasContraOAborto. Nela, mães de todas as idades convocavam amigas a postarem fotos de seus barrigões para defender a experiência da maternidade. Junto das fotos, mensagens como "Amo meu filho e defendo a vida." ou "Se não desejam outra vida evitem. Matar não!"
As reações contrárias à campanha se espalharam com a mesma velocidade e ganharam peso com a viralização de posts defendendo o direito à escolha da mulher. Entre eles, o texto Eu te Desafio a Pensar Outra Vez Sobre Aborto, da publicitária Flávia Correa, mãe de dois filhos. "Você, mãe, que postou orgulhosa a sua barriga de grávida para impedir que o aborto fosse legalizado, eu te desafio.
Eu te desafio a transpor a generosidade e a empatia que você tem com outras mães e com bebês para as mulheres que não desejam ser mães", diz um trecho do texto.
Renata dirigiu o tocante documentário Clandestinas, que traz relatos de mulheres que fizeram um aborto ilegal no Brasil. Segundo a diretora, o filme foi muito bem recebido em alguns países da Europa, chamando a atenção, inclusive, de um juiz francês, impressionado que, em um país laico e democrático como o Brasil, as mulheres não pudessem interromper uma gestação, se tivessem vontade.
O Estado é laico, mas a religião é forte
Apesar de o Brasil ser um país laico (em que a religião não interfere nas decisões do Estado), a influência religiosa é muito forte na sociedade e, consequentemente, na legislação. E isso não é fruto isolado da ascensão da bancada evangélica no Congresso. Em 2012, ao defender medidas de regulamentação do aborto, Thomaz Gollop, coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto e professor da Faculdade de Medicina de Jundiaí (SP), travou um diálogo revelador com o senador José Sarney (PMDB), então presidente do Senado. Assim que se sentou para receber o médico, que apresentava proposta de revisão à legislação, Sarney se adiantou:
- Doutor, estou recebendo o senhor por educação, mas sou católico, apostólico e romano e não estou interessado em mexer na lei do aborto.
- Mas senador, o senhor acha que as mulheres que fazem aborto devem ir para a cadeia? - retrucou o médico.
- Não, para a cadeia não.
- Mas é isso que diz o nosso Código Penal - ponderou Dr. Thomaz, sem convencer o interlocutor.
Gollop avalia que reside aí a dificuldade em levar adiante o debate sobre a descriminalização do aborto: a formulação da pergunta. Em vez de questionar se a pessoa é a favor ou contra, ele entende que a questão deveria ser: você concorda que uma mulher que interrompe uma gestação deva ser presa?
- Mesmo as mulheres que fazem aborto dizem que são contra, porque não é essa a questão. Eu também como médico sou contra, mas tenho a consciência de que a penalização é totalmente ineficaz e aumenta o problema, que é de saúde pública. O aborto é a quinta causa de mortalidade materna no Brasil - alerta.
Nesta reportagem, você confere dados sobre o aborto, argumentos de quem defende a legalização e o ponto de vista de quem é contra a prática. A intenção não é chegar a um consenso, nem fazer julgamentos. Mas, sim, apresentar fatos sobre uma realidade que já é encarada como um problema de saúde pública.
A quem defende a lei?
O aborto é proibido no Brasil. A Constituição defende o direito à vida, e o Código Penal tem dois artigos para tipificar o crime de aborto - que pode levar a penas de um a 10 anos de prisão. Mas para a advogada criminalista Marília Denardin Budó, a legislação, escrita em 1940, está impregnada não somente de moralismo, mas também de um patriarcalismo exacerbado, que desconsidera o direito da mulher ao próprio corpo.
- Este mesmo código, em um trecho que foi modificado em 2005, trazia alguns crimes sexuais de que somente poderiam ser vítimas as "mulheres honestas", ou seja, virgens, casadas etc., com uma evidente tentativa de regulação do corpo e da sexualidade feminina pelo Estado. E moralismo e patriarcalismo combinam com religião. Então, sim, está-se mais preocupado com o controle do corpo da mulher do que efetivamente com a vida - diz.
Para Marília, o paradoxo da criminalização do aborto é que, apesar de ter função de proteger a vida, ela só chega depois, para punir os culpados. Além disso, o medo da lei não impede que 800 mil mulheres busquem interromper a gravidez clandestinamente a cada ano. Quem tem dinheiro recorre a clínicas (mais ou menos bem estruturadas). Em geral, as mais pobres compram remédios abortivos, que, em geral, resultam em complicações que podem levar à morte.
Chefe da Unidade de Atenção à Saúde da Mulher do Hospital Universitário de Santa Maria (Husm), o ginecologista e obstetra Paulo Afonso Beltrame diz serem inúmeros os casos de mulheres que chegam até o hospital com complicações por conta de um aborto.
- Infelizmente, todas as semanas chegam pacientes em situações graves, com processos infecciosos já agravados, em que elas necessitam de internação e, às vezes, até serem submetidas a cirurgia de retirada do útero, pois o órgão já está infectado. Algumas ficam dias na UTI, pois provocam o aborto em situações em que não há a higiene e esterilização necessária, nem um profissional capacitado para acompanhar - relata o médico, que é contra o aborto.
Para Marília Budó, essa realidade conhecida nos hospitais coloca em cheque o argumento jurídico que justifica a criminalização do aborto como defesa da vida:
- É para proteger, mas provoca mais mortes. As pessoas que realmente chegam a ser processadas e condenadas pelo crime de aborto são pobres, pelo fato de que são descobertas quando das complicações e da chegada ao sistema público de saúde. As mulheres com condições financeiras de pagar por uma boa clínica particular nunca vão chegar no sistema público e, portanto, nunca ninguém ficará sabendo que cometeram aborto. Assim, o sistema penal quando atua para criminalizar mulheres pelo aborto atua seletivamente - diz a criminalista.
Mas é seguro?
Em que período é seguro fazer o aborto?
- O abortamento provocado nunca é seguro. A mulher corre o risco de ter uma hemorragia ou uma infecção uterina, por exemplo. Quando há o risco de gravidez ou o caso em que é necessário o aborto, o ideal é que seja feito até a 12ª ou 13ª semana de gestação.
Que tipos de malefícios os métodos abortivos podem causar no corpo da mulher?
- Na realidade, as medicações, quando tomadas de forma incorreta, podem provocar a ruptura do útero por excesso de contrações uterinas. Se a pessoa toma um remédio de maneira incorreta, ela pode provocar uma ruptura, causando uma hemorragia tão grande que pode levar à óbito. Se você toma a medicação e não ocorre o abortamento, o bebê pode ter problema. A medicação só deve ser tomada se ela realmente for provocar o abortamento, se a pessoa realmente tiver certeza que funciona, para o feto não ter problemas no futuro.
Fonte: Paulo Afonso Beltrame, ginecologista e obstetra, chefe da Unidade de Atenção à Saúde da Mulher do Hospital Universitário de Santa Maria (Husm)
Planejamento a favor da vida
É com tristeza que o médico ginecologista e obstétrico Paulo Afonso Beltrame vê dezenas de mulheres chegarem ao Hospital Universitário de Santa Maria (Husm) sofrendo as consequências de um aborto induzido.
- Sou totalmente contra o aborto provocado, visto que a mulher coloca em risco a vida dela e do feto. Ela tem uma família por trás que necessita dela. No momento em que ela faz o aborto, ela tira uma vida do mundo. Eu defendo e trabalho resgatando a vida - afirma.
Na avaliação do médico, faltam incentivos e investimentos para trabalhar o planejamento familiar na comunidade.
- Existem hoje, nos serviços públicos de saúde, pessoas especializadas que orientam a mulher quanto a anticoncepção. Deveria haver uma preocupação em conscientizar toda mulher a procurar um serviço, particular ou público, para se orientar e se informar. No momento em que ela recebe a orientação, ela tem a condição de se cuidar e evitar transtornos físicos e psicológicos na vida dela ao engravidar sem o planejamento e, no fim, procurar o aborto. Os serviços de saúde, além de estarem capacitados por profissionais, oferecem medicações anticoncepcionais gratuitas.
Desde 1999, a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) Pró-Vida trabalha junto a comunidades de Santa Maria, para fortalecer 40 famílias em situação de vulnerabilidade social. Nas reuniões realizadas nas vilas Santa Terezinha e Schirmer e no distrito de Santo Antão, os voluntários trabalham temas como a valorização da mulher, prevenção de doenças, violência familiar e saúde.
Volta e meia, o termo aborto vem à tona, e todos os alarmes da organização se acendem.
- Em princípio, essas mulheres são muito reservadas, porque são de região muito pobre e têm medo de falar. Mas quando elas falam, encaminhamos para psicólogo, assistente social - conta a presidente da Pró-Vida, Teolina Paetozld.
Na avaliação de Teolina, são diversos os fatores que podem levar uma mulher a desejar interromper a gravidez. Em comum, a insegurança.
- Muitas optam pelo aborto por serem ameaçadas pelo namorado, pelo companheiro ou mesmo por orientação da família. E nós procuramos dar o maior apoio possível para evitar essa tragédia, a morte de uma vida que já existe, que está forte, mas que não é ouvida - argumenta.
Teolina diz, porém, que sua organização não dá as costas para as mulheres que se submetem ao procedimento:
- Uma mãe que faz aborto sofre consequências para o resto da vida. A gente trabalha com elas para que lidem com esse trauma. Fazemos, inclusive, encaminhamentos para tratamentos de saúde mental.
É proibido, mas...
- Conforme o DataSUS, em 2013, houve 205.855 internações decorrentes de abortos no país
- Desse total, 51.464 foram espontâneos e 154.391 induzidos (ilegais e legais)
- Nesse período, foram registrados 1.523 abortos legais (por estupro, ameaças à saúde materna e anencefalia fetal)
- Em 2013, foram feitas 190.282 curetagens no país via SUS, ao custo calculado em R$ 78 milhões
- A ONG Ações Afirmativas em Direitos e Saúde revela que o número de abortos induzidos é quatro ou cinco vezes maior do que o de internações. Assim, estima-se que passem de 850 mil o número de gestações interrompidas no Brasil, a cada ano. Algumas organizações dizem que chega a 1 milhão
- 1 mulher morre a cada 2 dias e meio no Brasil após realizar um aborto clandestino.
- 1 a cada 5 brasileiras com mais de 40 anos já fizeram, pelo menos, um aborto na vida
Os riscos
- Há diversos medicamentos no mercado que podem causar aborto em gestantes. Porém, como a finalidade do fármaco não é essa, seu uso pode ser ineficaz e muito perigoso. Há chances de um abortamento incompleto, o que pode ocasionar má-formação fetal, além de hemorragias, ruptura do útero e infecções. Pode causar também a morte. As mulheres que sobreviveram, em geral, falam que a dor é extrema.
- Em clínicas clandestinas, à margem de fiscalizações sanitárias e médicas, as pacientes podem ficar nas mãos de profissionais malpreparados. As mulheres podem ter infecções, contrair doenças (que incluem a Aids) e ter hemorragias que podem levar à morte e perdas de órgãos internos.
Fontes: Ministério da Saúde, Universidade de Brasília (UnB), Organização Mundial de Saúde (OMS), ONG Ações Afirmativas em Direitos e Saúde
A LEI NO BRASIL
É crime
Os artigos 124 e 125 do Código Penal Brasileiro estabelecem que o aborto é crime quando praticado:
- Pela própria gestante.
- A pedido da gestante.
- Sem o consentimento da gestante.
Penas
- Detenção de 1 a 3 anos para a mulher que faz o aborto em si mesma ou que consente que outra pessoa o faça.
- Reclusão de 3 a 10 anos para a pessoa que faz o aborto em uma mulher, sem seu consentimento.
- Reclusão de até 10 anos para a pessoa que faz o aborto com o consentimento da gestante menor de 14 anos, da alienada ou doente mental, ou ainda se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.
- As penas podem ser aumentadas se houver lesão grave ou morte da gestante.
Não é crime
O artigo 128 permite o aborto nos seguintes casos:
- Quando há risco à vida oda gestante.
- Quando a gravidez resulta de estupro.
- Quando o feto é anencéfalo.
Como é a lei em outros países
- Entre 1950 e 1985, a maioria dos países industrializados aprovou leis de legalização do aborto. Entre os países da América do Norte e da Europa, a maior parte permite a prática
- Mais de 70 países autorizam a interrupção da gestação de forma ampla ou sem restrição quanto a motivações
- As leis mais restritivas estão na África, no Oriente Médio, na América Latina e no sul da Ásia. Entre os países em que a situação é considerada mais proibitiva, estão Chile, El Salvador e Nicarágua.