Por Sergius Gonzaga
Professor, coordenador do Livro e da Literatura da Secretaria da Cultura de Porto Alegre
Foi por meio da crônica – esta espécie literária de natureza breve, imprecisa e mutante, centrada em comentários sobre as faces miúdas do cotidiano – que David Coimbra se tornou referência permanente para os leitores gaúchos. Seu precoce desaparecimento comoveu milhares de pessoas que o admiravam e se identificavam com seus textos escritos naquele tom coloquial, aparentemente menor e plenamente acessível, exigência básica do gênero.
David tinha as virtudes dos melhores cronistas. O olhar que lançava sobre a realidade estava impregnado de ardor pelo movimento incessante da vida, pelo fluxo das paixões humanas, pelos acontecimentos históricos e pelos fatos triviais, em que surpreendia as pulsões dramáticas ou cômicas da existência. Parte considerável da energia e da dimensão múltipla de seus escritos nascia desse amor e dessa curiosidade pelas coisas do mundo. Produziu crônicas esportivas, políticas, humorísticas, líricas, registros de costumes, debateu os valores do nosso tempo, frequentemente ocultos em pequenas histórias, estabelecendo aquele tipo de crônica-conto, de desfecho inesperado, que tanto agrada ao leitor. Tudo isso procedia do afeto incomensurável que nutria pela matéria movente e suas circunstâncias.
Em todas as modalidades de crônica se revelava persuasivo, sedutor e, às vezes, polêmico. Guardei a impressão de que o debate candente o atraía, embora fosse uma pessoa tolerante e amável. Sua ideologia, um tanto difusa, como convém aos escritores, mesclava liberalismo, humanismo e certo viés cético que o levava a desconfiar das certezas inabaláveis, da fé irracional em sistemas e da redenção apocalíptica prometida por líderes messiânicos.
Era também um grande leitor, e há ressonâncias em sua obra de dois dos maiores cronistas do país: Nelson Rodrigues e Rubem Braga. Do primeiro cultivou o gosto pela frase de efeito, pela cena patética, pelo humor insólito e pelas deliciosas histórias de fundo erótico, muitas ocorridas no IAPI. Esse bairro porto-alegrense foi sua máxima invenção ficcional, seu território mítico, onde os impulsos sexuais vinham à tona em turbilhão avassalador, arrastando rapazes e moças a um universo de prazeres e pecados que nós, moradores de outras regiões da cidade, desconhecíamos.
Já do velho Rubem Braga herdou a visão lírica, capaz de descobrir na atmosfera da vida gris a luminosidade da poesia humana, da amizade, do prazer do convívio e, sobretudo, dos encantos da nostalgia. Talvez esses textos constituam o grão mais tocante e puro de sua escrita. Carregados de lembranças, sejam as familiares, sejam as de seu bairro (que graças a ele entrou na geografia literária da capital gaúcha); ou ainda evocando as experiências juvenis dos anos 1980 e constituindo não apenas uma autobiografia, mas fixando para sempre uma época em sua fisionomia moral e social, David possivelmente tenha ultrapassado a realidade imediata e alcançado a transcendência buscada por todos os cronistas. Seus livros, tenho certeza, continuarão sendo lidos.
É assim que a arte triunfa sobre a morte: permanecendo.