A fonte de inspiração de David Coimbra para compor suas crônicas sempre foi perene e inesgotável. Porque o tecido fino de que eram feitos seus devaneios literários entrelaçava-se na grandeza e na desimportância de sua própria vida; fervilhava na atração irrefreável e fabulosa que ele nutria por todas as mulheres do mundo; ecoava no encontro e nos desencontros das conversas ébrias, alimentava-se da fidelidade canina que nutria por seus amigos de antes e de sempre; derramava-se no fascínio pelos livros de todos os tempos, línguas e estilos para explodir feitio gol na sua vertiginosa paixão pelo futebol, em especial, é claro, o futebol de sua aldeia.
A aldeia, aliás, sempre foi o foco e esteve no centro das crônicas, e da vida, de David Coimbra – e é também por isso que o grandiloquente e o ordinário marchavam de mãos dadas em sua obra e na sua leitura do mundo. É claro que David conhecia bem a frase de Tolstoi e tratou de colocá-la em prática em mais de 2 mil colunas. A questão é que a aldeia que David cantou não se resumia à cidade onde nasceu, e embora a tenha expandido até Boston, muitas vezes a circunscreveu aos estritos limites do IAPI, essa "ilha cercada de Porto Alegre por todos os lados", como ele definiu o bairro operário onde veio ao mundo.
Numa espécie de autobiografia precoce não autorizada, David Coimbra compartilhou com seus leitores as lembranças agridoces de uma infância tangida por certos horizontes estreitos mas fundamentada na amplitude de suas largas paixões juvenis, suas matinês e seus cowboys, seus gibis, seus encantos e desencantos, suas façanhas reais e imaginárias, tudo entrelaçado na teia sólida das relações familiares. O avô sapateiro, contador de histórias; a mãe, professora primária que vendia enciclopédias de porta em porta, o irmão e a irmã e mesmo o pai de perfil ensombrado, todos personagens que se tornaram íntimos dos leitores. O mesmo Tolstoi, o aldeão, disse que todas as famílias felizes se parecem e que as infelizes são infelizes à sua própria maneira. Mas na receita caseira das crônicas de David, sua família parece ter encontrado a felicidade em mal traçadas linhas.
Já David, ele mesmo, encontrou a redenção – e a via de escape – de modo corriqueiro para tantos amantes das letras: vislumbrou-a nos livros de aventura de páginas amareladas, nos duros romances policiais de capa mole, nos contos de terror, nos romances históricos relegados aos baús de saldos. Sua biblioteca de Babel foram os sebos do Centro. E essa paixão – e o débito para com autores supostamente "menores" – revelou-se não só o passaporte para a alta literatura como um salvo conduto para David forjar um estilo próprio, simultaneamente descompromissado e ambicioso: a fórmula ideal para louvar a transcendência que jaz no cerne do que parece apenas comezinho. Ou seja, um estilo, e um texto, sob medida para a brevidade da crônica que no dia seguinte embrulha peixe.
Esse olhar, despretensioso e atrevido no mesmo arranjo – ilustrado e popular –, David Coimbra lançou-o sobre aquela que talvez tenha sido sua maior paixão, aquela que o consagrou como cronista e como repórter: o futebol. Em torno do mundo da bola, David exerceu com plenitude seu ofício de narrador homérico, concedendo às peladas disputadas num campo careca, à sombra das raparigas em flor, o viés épico que nunca deixou de vislumbrar nos Gre-Nais, até no mais opaco deles, que era capaz de transformar em saga.
David Coimbra surrupiou o brilho do dia para passar a noite em claro e encheu de pretas letras o papel em branco, deixando o diário mais colorido. David Coimbra desnudou a realidade para que o dia a dia desfilasse travestido de originalidade – e uma pitada de luxo. David Coimbra cantou à vida, aos amores, aos amigos e aos comes e bebes. David Coimbra foi um centroavante rompedor e peladeiro que se consagrou nos verdes gramados de cinco ou seis Copas do Mundo – e ainda coube a ele fazer a crônica de dois campeões mundiais. E ambos originários de sua aldeia _ a aldeia que David Coimbra celebrou em meio ao grêmio das nações para que ela nunca deixasse de ser municipal, dentro das quatro linhas de crônicas inesgotáveis e perenes, feito dropes de irrealidade luzindo no balcão de um armazém do IAPI.