
Por Italo Bertão Filho
Estudante de Jornalismo da PUCRS
Escondido desde a falência da Bloch Editores, em agosto de 2000, o acervo da extinta revista Manchete ressurgiu digitalizado no site da Biblioteca Nacional no fim do ano passado. Além de todo o caldo cultural produzido nos 48 anos da publicação, editada a partir de 1952, a ressurreição do arquivo apresenta uma fase menos lembrada da carreira do escritor Carlos Heitor Cony, morto em janeiro de 2018: o período em que trabalhou como jornalista na editora de Adolpho Bloch, batendo ponto na Manchete por mais de três décadas. Constantemente ameaçado de prisão e sem conseguir emprego na imprensa carioca, temerosa de contratar uma persona non grata à ditadura militar, Cony encontrou refúgio justamente em uma das empresas de comunicação que mais adularam o governo pós-1964.
Convidado por Adolpho para ser redator da Manchete em 1967, ele também dirigiu redações de outras publicações da editora. Em 2004, definiu à Revista Imprensa:
– Prisão por prisão, a prisão da Manchete era mais confortável.
Pudera. O imponente prédio da Bloch no Rio de Janeiro, com móveis de jacarandá, teatro, galeria de arte, talheres de prata e vista para a Baia de Guanabara, poderia servir muito bem como um presídio cinco estrelas – e serviu. Quando visado pelos militares, que o processaram por seis vezes, Cony isolava-se numa suíte do 11º andar.
Durante as décadas em que permaneceu na empresa, manteve uma coluna em quase todas as edições da Manchete. São textos que merecem ser reunidos em livro – ainda que alguns sejam datados: em crônica do final de 1998, após a taxa de juros atingir o maior índice da história, crise na Rússia, derrota da Seleção no final da Copa e a ruína da própria Bloch, Cony define aquele ano como o pior já vivido pelo país. Encarregado inicialmente de editar as memórias de Juscelino Kubitschek, amigo de Adolpho, que resultariam na série JK: Memorial do Exílio, reunida em livro em 1982, Cony especializou-se em reconstituir episódios e personagens históricos. Mas também não tinha pruridos em escrever amenidades como a reportagem O Ménage à Trois do Tetra, publicada após a Copa de 1994, brincando sobre a relação dos jogadores Romário, Bebeto e Ronaldo, que ainda não era Fenômeno.
Capítulo curioso e controverso na história de Manchete e de Cony são as previsões do vidente Allan Richard Way, cego pela catarata. Personagem constante nas edições de dezembro e janeiro, quando o noticiário entra em marcha lenta, era apresentado como um professor e astrólogo indiano que havia trocado de nome para ganhar credibilidade na terra da Rainha.
O único jornalista credenciado para entrevistá-lo era o repórter Robert MacPherson, “em condições que não interessa contar”. Acontece que todos os nomes e personagens eram inventados sem que o leitor tenha sido informado disso. O tom pendia quase sempre para o absurdo: Elizabeth Taylor seria vitimada em 1979 por um “regime de emagrecimento”, segundo o guru. Way deu as caras pela última vez no fim de 1999. Cony revelaria a farsa apenas em 2015, em entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto.
Outra função de Cony na Manchete era a redação das colunas Adolpho Bloch Escreve, misto de editorial e crônica. O velho Adolpho, que falava iídiche, russo e português, jamais sentou-se à máquina de escrever. Preferia ditar suas ideias e memórias, volta e meia relembrando a sofrida viagem de sua família da Rússia para o Brasil – saga recontada em Os Irmãos Karamabloch (2008). Como escrevia de forma coloquial, Cony tornou-se seu ghostwriter preferido junto com Otto Lara Resende. O período em que Cony trabalhou na Manchete abarca tanto seu último livro de ficção durante mais de 20 anos – Pilatos (1973) – quanto o retorno triunfal às livrarias, com o best-seller Quase Memória (1995), escrito enquanto cuidava da cachorra Mila, presente de Adolpho, que estava doente.
O Cony do Correio da Manhã, onde publicou crônicas que resultariam no polêmico O Ato e o Fato (1964), foi esmiuçado à exaustão. Mas o período em que escreveu na Manchete permanece um capítulo menor na obra do escritor. O próprio Cony parecia ressaltar essa ideia ao colocar-se como encarcerado sob custódia de Adolpho Bloch. Ao mesmo tempo, relembrava saborosos causos vividos na revista, que vivia influenciada pelos humores do russo. Muitas histórias – como a do falso vidente – estavam dispersas em suas crônicas, entrevistas e em livros. Faltava o acesso à fonte original, capaz de referendar a memória oral. O trabalho dos pesquisadores agora está facilitado pela iniciativa da Biblioteca Nacional.