A estreia de Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon, 2023) nos cinemas, nesta quinta-feira (19), convida a revisitar a carreira de Martin Scorsese. Ainda mais que o filme reúne várias das marcas do cineasta estadunidense de 80 anos, a começar pela presença de seus dois atores preferidos: Robert De Niro e Leonardo DiCaprio.
Foi o que fiz durante as férias e nesta retomada do trabalho: assisti de novo ou pela primeira vez a todos os 26 longas-metragens de ficção do diretor para montar este ranking afetivo — que inclui Assassinos da Lua das Flores. Por questão de tempo e de parâmetros de comparação, ficaram de fora os vários documentários, como Italianamerican (1974), O Último Concerto de Rock (1978), Minha Viagem à Itália (1999), No Direction Home (2005) e The Rolling Stones: Shine a Light (2008). Também não entrou o segmento dirigido por Scorsese no tríptico Contos de Nova York (1988), feito com Francis Ford Coppola e Woody Allen.
Definir os melhores e os piores foi razoavelmente fácil. O difícil foi classificar os intermediários, pois, no fundo, a distância entre o 10º e o 20º colocado é bem menor do que os números indicam.
No total, os longas somam 90 indicações ao Oscar, com 20 conquistas. Scorsese concorreu 14 vezes, sendo nove como diretor (Touro Indomável, A Última Tentação de Cristo, Os Bons Companheiros, Gangues de Nova York, O Aviador, Os Infiltrados, A Invenção de Hugo Cabret, O Lobo de Wall Street e O Irlandês), três na categoria de melhor filme (como um dos produtores desses três últimos títulos) e duas como coautor dos roteiros adaptados de Os Bons Companheiros e A Época da Inocência. Ganhou somente uma estatueta dourada da Academia de Hollywood, a de direção, por Os Infiltrados. Merecia mais. Merecia outros.
26) Kundun (1997)
É uma cinebiografia de Tenzin Gyatso, 88 anos, o 14º Dalai Lama, o mais importante líder espiritual e ex-chefe de Estado do Tibete. Não se esperava a violência típica dos filmes de Martin Scorsese, mas falta também a característica intensidade. Assim escreveu o saudoso Tuio Becker (1943-2008), nas páginas de ZH, quando o filme estreou nos cinemas de Porto Alegre: "Por aproximação, o filme de Scorsese poderá ser visto como uma daquelas extravagâncias de Federico Fellini, da época de Satyricon ou Casanova, falhadas mas curiosas. O roteiro, de um rigor documental por vezes fascinante, mas outro tanto exasperante, traz a assinatura de Melissa Mathison, que contou com a colaboração do próprio Dalai Lama para contar sua história, desde o nascimento até os tempos atuais do itinerante exílio pelo mundo. Interpretado por atores não profissionais, o filme se ressente desse fato — especialmente na fase adulta da vida do Dalai Lama. A longa sequência em que ele se encontra com o líder chinês Mao Tsé-tung é insuportável. Nem os extremos de beleza da fotografia de Roger Deakins e a estranha sonoridade da trilha de Philip Glass conseguem disfarçar a precariedade dos atores".
Kundun foi indicado ao Oscar nas categorias de melhor fotografia (Roger Deakins), direção de arte e decoração de set (Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo), figurino (Dante Ferretti) e música original (Philip Glass). (Indisponível no streaming)
25) Sexy e Marginal (1972)
Boxcar Bertha (título original) foi o segundo longa-metragem de Scorsese e o primeiro para um estúdio de Hollywood. Produzido por Roger Corman, é a adaptação da autobiografia fictícia de uma jovem criminosa nos EUA dos anos 1930, na época da Grande Depressão. Barbara Hershey e David Carradine interpretam os personagens principais: Bertha, uma garota órfã forçada a deixar a fazenda onde vivia, e Big Bill Shelly, um sindicalista perseguido por seus ideais comunistas — e que tem um destino à la Jesus Cristo.
Com um ritmo oscilante (que faz seus 87 minutos de duração parecerem bem mais), cenas de sexo supostamente reais, segundo declarou a atriz, e uma sangrenta sequência final, o filme vale mais por seu valor arqueológico. (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video e Apple TV)
24) New York, New York (1977)
Descontados os documentários sobre artistas do rock, é o único musical na carreira de Scorsese, que, mergulhado no vício em cocaína, tocou um projeto megalômano (vide as mais de duas horas e meia de duração), descontrolado (apostou muito em improvisações) e repetitivo (nas palavras do próprio diretor). Em 1945, no dia em que termina a Segunda Guerra Mundial, Jimmy Doyle (Robert De Niro), um ambicioso saxofonista de jazz, conhece a cantora Francine (Liza Minnelli), por quem se apaixona. O romance é turbulento, principalmente por causa do egoísmo de Jimmy, e os dois acabam seguindo carreiras em separado.
A recepção negativa de New York, New York junto à crítica e o fracasso de bilheteria empurraram o cineasta para o fundo do poço. Em 1978, precisou ser internado em um hospital, onde foi diagnosticado com hemorragia interna grave e à beira de uma hemorragia cerebral. O consumo de cocaína e remédios sedativos e hipnóticos estava matando-o aos poucos — com 1m70cm, pesava 45 quilos. Durante a recuperação, De Niro visitou Scorsese no hospital e deu um chacoalhão fundamental para que o amigo continuasse vivo e produtivo: "Qual é o problema com você, Marty? Você não quer viver para ver se sua filha vai crescer e se casar? Você vai ser um daqueles diretores que faz alguns bons filmes e acabou?". (Indisponível no streaming)
23) Alice Não Mora Mais Aqui (1974)
Alice Doesn't Live Here Anymore é uma obra bem singular na filmografia do diretor. Primeiro pelo raro protagonismo feminino, segundo por trocar a Nova York natal pelas amplidões do Sudoeste dos EUA, onde acompanha a errância da viúva Alice Hyatt (Ellen Burstyn), viajando em uma perua com o filho pelas estradas da vida. No caminho, se envolve com Ben Everhart (Harvey Keitel), um homem casado e agressivo — acaba precisando fugir da cidade, indo trabalhar como garçonete em outro lugar, onde conhece o fazendeiro David (Kris Kristofferson).
Valeu a Ellen Burstyn o Oscar de melhor atriz e concorreu aos troféus de atriz coadjuvante (Diane Ladd) e roteiro original (Robert Getchell). (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play)
22) Vivendo no Limite (1999)
"Salvar a vida de alguém é como se apaixonar. É a melhor droga deste mundo. Durante dias, às vezes semanas, você anda pelas ruas vislumbrando o infinito em tudo o que vê. O tempo se retarda e distende e você começa a achar que se tornou imortal", diz o paramédico Frank Pierce, personagem de Nicolas Cage em Bringing Out the Dead. O problema é que Frank já nem lembra mais da última vez que salvou uma vida — na verdade, ele vive assombrado por visões de Rose, garota cuja morte ele não conseguiu evitar.
O roteiro escrito por Paul Schrader, o mesmo de Taxi Driver (1976), a partir do livro autobiográfico de Joe Connelly ecoa o clássico sobre o motorista de táxi: estamos novamente nas ruas de Nova York, onde o protagonista e narrador vai perdendo sua sanidade. A sucessão de incidentes bizarros e/ou violentos remete a outro filme do diretor, Depois de Horas (1985). Alguns críticos consideram Vivendo no Limite um tesouro subestimado, mas, para mim, o encanto da premissa se esvai rapidamente, apesar da atuação convincente e contida de Cage. (Star+)
21) A Cor do Dinheiro (1986)
The Color of Money é um dos filmes menos autorais de Scorsese — para começar, é a única continuação (ainda que sui generis) em sua carreira. Na trama, Paul Newman retoma seu personagem de Desafio à Corrupção (1961), Fast Eddie Felson, um jogador de sinuca talentoso, mas com uma atitude destrutiva. Naquele filme, sua ambição faz com que ele desafie o lendário Minnesota Fats em uma partida onde aprenderá uma grande lição.
Em A Cor do Dinheiro, o agora aposentado das mesas Eddie, ao conhecer em um bar o talentoso Vincent (Tom Cruise, já com uma presença magnética), decide treiná-lo para fazer dele uma versão mais jovem de si mesmo. Mas a relação entre eles entra em conflito por causa da personalidade de Vincent. Levou o Oscar de melhor ator (Paul Newman) e competiu nas categorias de atriz coadjuvante (Mary Elizabeth Mastrantonio), roteiro adaptado (Richard Price) e direção de arte/decoração de set (Boris Leven e Karen O'Hara). Curiosidade: o roqueiro Iggy Pop faz uma ponta como um jogador de sinuca. (Star+)
20) Silêncio (2016)
Para o crítico Clayton Davis, da Variety, este é o melhor filme de Scorsese, que levou mais de 25 anos para conseguir adaptar o romance homônimo de Shusaku Endo. Trata da perseguição aos missionários católicos no Japão do século 16. Os jesuítas portugueses Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield, em bela atuação) e Francisco Garrpe (Adam Driver) partem em missão secreta para descobrir o paradeiro do padre Cristóvão Ferreira (Liam Neeson), seu mentor, que teria abandonado o cristianismo por imposição dos governantes — em nome da hegemonia do budismo como religião oficial do país.
Como alguém pode permanecer fiel a um Deus que não sai das sombras?, pergunta o diretor enquanto registra as torturas infligidas por vilões caricatos neste longa-metragem de ritmo lento e cenas reiterativas que fazem a duração parecer maior do que 160 minutos. Ainda assim, há momentos antológicos em Silence, como a crucificação à beira-mar, onde as ondas afogam os sacrificados, e a parábola das quatro concubinas, por meio da qual o Inquisidor (Issey Ogata) explana como os colonizadores europeus ameaçam a cultura e a harmonia locais. Foi indicado ao Oscar de fotografia (Rodrigo Prieto). (Indisponível no streaming)
19) A Invenção de Hugo Cabret (2011)
A filmografia de Martin Scorsese é tão boa quanto extensa, forçando alguns belos títulos a ocuparem posições mais baixas em um ranking. É o caso de Hugo, versão de um romance escrito por Brian Selznick, que, em casa, perde pontos por não poder ser vista da forma como foi concebido: em 3D.
Interpretado por Asa Butterfield, Hugo Cabret é um guri órfão desde que o pai, um relojoeiro (Jude Law), morre num incêndio. Ele mora às escondidas na Gare Montparnasse, uma das maiores estações de trem da Paris de 1931. "Lembra Antoine Doinel, o personagem d'Os Incompreendidos (1959) de François Truffaut — um menino encantado pelo cinema que vivencia suas primeiras descobertas enquanto foge da intolerância da lei (personalizada num estupendo Sacha Baron Cohen)", comparou o crítico Daniel Feix em ZH. Obcecado por um autômato, um homem mecânico, que o pai encontrou e não conseguiu fazer funcionar antes de morrer, Hugo se aproxima do pai da menina Isabelle (Chloë Grace Moretz), ninguém menos do Georges Méliès (1861-1838) — papel do sempre ótimo Ben Kingsley —, cineasta genial que vive esquecido tocando uma loja de brinquedos na mesma estação. A partir desse contato, Scorsese exerce sua cinefilia — as referências incluem as produções francesas Zero de Conduta (1933), A Grande Ilusão (1937) e 30 Anos Esta Noite (1963) — e faz uma ponte entre os primórdios do cinema e o futuro (ou o presente), usando a tecnologia atual para prestar tributo aos truques de Méliès. A Invenção de Hugo Cabret recebeu cinco Oscar — fotografia (Robert Richardson), direção de arte (Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo), mixagem de som, edição de som e efeitos visuais — e competiu nas categorias de melhor filme, direção, roteiro adaptado (John Logan), edição (Thelma Schoonmaker), figurino (Sandy Powell) e música original (Howard Shore). (Canal Telecine do Amazon Prime Video e do Globoplay)
18) Depois de Horas (1985)
Ganhador do prêmio de melhor direção no Festival de Cannes, After Hours é outro filme que costuma aparecer entre os melhores de Scorsese em rankings semelhantes. Na minha revisão, pareceu um título menor, ainda que conserve virtudes intocadas.
A principal é trabalhar o característico tema do homem contra todos sob uma chave cômica, mesmo que ácido e mórbido. A Nova York que o diretor tanto reverencia surge aqui numa espécie de lado B daquela vista em Caminhos Perigosos, Taxi Driver e Os Bons Companheiros. Em vez de marginais, prostitutas e degenerados, surgem personagens exóticos que circulam pela madrugada e cruzam com o protagonista vivido por Griffin Dunne, sujeito que só queria se dar bem com uma garota (Rosanna Arquette) mas acaba varando a noite num bizarro pesadelo acordado. (Looke e disponível para aluguel em Apple TV, Google Play e YouTube)
17) O Aviador (2004)
O filme que valeu a Leonardo DiCaprio sua primeira indicação ao Oscar de melhor ator vale especialmente por sua atuação e pela esplendorosa reconstituição de época. O épico de 170 minutos sobre o multimilionário estadunidense Howard Hughes (1905-1976) começa durante a epidemia de cólera de 1913 em Houston, no Texas. Sob iluminação que remete a filmes bíblicos, um menino é banhado pela mãe, que lhe fala sobre "terríveis germes". É ali que o pequeno Howard aprende uma espécie de mantra: soletrar a palavra "quarentena". The Aviator então pula para 1927, quando Hughes (já na pele de DiCaprio), após herdar do pai uma empresa de brocas para prospecção de petróleo, gasta a fortuna filmando no deserto Anjos do Inferno. Às vésperas da quebra da Bolsa de Valores de Wall Street, um guri de 20 e poucos anos inventa o conceito de superprodução hollywoodiana: foram três anos de filmagem, que consumiram US$ 4 milhões e as vidas de três pilotos. Mas o voo mais alto de Hughes é mesmo nos céus. Piloto audaz e empresário dinâmico, bate recordes de velocidade, projeta aeronaves e adquire o controle acionário da TWA. Surge o outro vértice do filme, o combate do protagonista contra o presidente da PanAm (Alec Baldwin) e seu testa-de-ferro, o senador Ralph Brewster (Alan Alda, pusilânime).
Entre um filme e um avião, Hughes seduz atrizes: Jean Harlow (encarnada pela cantora Gwen Stefani), Ava Gardner (Kate Beckinsale) e Katharine Hepburn (Cate Blanchett). Scorsese encerra a história antes da decadência do biografado — não mostra sua longa e doentia reclusão, nem o antissemitismo e as inclinações fascistas —, mas enfatiza a ganância, a insensibilidade, a corrupção, o desprezo pelo coletivo, as fobias e os sintomas de um transtorno obsessivo-compulsivo. O epílogo não é uma ode ao Hughes empreendedor. A repetição, frente a um espelho, da frase "The way of the future" (O caminho do futuro) soa menos como um novo mantra do que como uma sombria premonição. Premiado com os Oscar de atriz coadjuvante (Cate Blanchett), fotografia (Robert Richardson), edição (Thelma Schoonmaker), direção de arte (Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo) e figurino (Sandy Powell), O Aviador também brigou nas categorias de melhor filme, diretor, roteiro original (John Logan), ator coadjuvante (Alan Alda) e edição de som. (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube)
16) Cassino (1995)
"Destino, ganância, vaidade, desatino, culpa, redenção. São muitas as causas que levam os grandes personagens de Martin Scorsese a trilhar por caminhos violentos", escreveu o jornalista Marcelo Perrone em ZH na época do lançamento em DVD de Casino, uma espécie de continuação espiritual de Os Bons Companheiros (1990) — um certo déjà vu contribui para o filme não figurar em posição mais alta.
A ação nas ruas de Nova York se transporta para a desértica Las Vegas dos anos 1970. Como no título anterior, Scorsese adapta um livro-reportagem de Nicholas Pileggi e escala os atores Robert De Niro e Joe Pesci. Este último reencarnando o gângster brutal e de pavio curto, enquanto o primeiro faz Sam Rothstein, craque das apostas que acaba promovido a gerente de um grande cassino pelos mafiosos que comandam a jogatina, os políticos e a polícia de Las Vegas. Após escapar de um atentado, ele revê sua ascensão e sua desgraça, acelerada pela paixão por uma prostituta viciada em drogas (Sharon Stone) e pelos excessos do pouco confiável amigo Nicky Santoro (Pesci). Cassino concorreu ao Oscar de melhor atriz (Sharon Stone) e foi eleito o terceiro melhor filme do ano pela revista francesa Cahiers du Cinèma. (Amazon Prime Video e canal Telecine do Amazon e do Globoplay)
15) Ilha do Medo (2010)
Com roteiro de Laeta Kalogridis, a versão de Scorsese para o romance policial escrito por Dennis Lehane — originalmente lançado no Brasil como Paciente 67, em 2005, e depois rebatizado com o mesmo nome do filme — aposta no suspense, no mistério e na desconfiança. Na revisão de Shutter Island, a diversão, por assim dizer, foi caçar as pistas espalhadas na trama ambientada em 1954. Leonardo DiCaprio interpreta o policial do FBI Teddy Daniels, que, na companhia de seu novo parceiro, Chuck Aule (Mark Ruffalo), é mandado para a ilha do título, sede de um bem protegido hospital psiquiátrico para criminosos. Lá, a dupla vai investigar a fuga de uma paciente, Rachel Solondo, assassina de seus próprios filhos. As buscas são dificultadas pela força da natureza — uma tempestade se aproxima —, por uma certa resistência do médico-chefe, dr. Cawley (Ben Kingsley), e por um inimigo interno: Teddy é acossado por sonhos e pesadelos envolvendo sua esposa (Michelle Williams) e sua experiência como soldado na Segunda Guerra Mundial.
Ainda que por vezes atrase demais o andamento quando deveria ir mais rápido (e vice-versa), o cineasta encontra tempo para trazer à tona temas relevantes. Um deles é o peso dos rótulos: uma interna diz que, no momento em que você é classificada como louca, todas suas atitudes passam a ser vistas como sintomas. Outro é a luta incessante do indivíduo contra seus próprios fantasmas, uma batalha na qual nem sempre a vitória merece comemoração. Como diz um personagem: melhor viver como um monstro ou morrer como um homem bom? (Netflix)
14) Gangues de Nova York (2002)
A cidade sangra do começo ao fim em Gangs of New York, que é baseado em livro publicado em 1928 pelo jornalista Herbert Asbury e se passa entre 1846 e 1863. Era a época da Guerra Civil nos Estados Unidos: o Norte apoiava a abolição da escravatura, o Sul era contra. No principal porto de entrada para os europeus, Nova York, duas facções disputavam a região barra-pesada das Cinco Pontas, no sudeste de Manhattan (hoje um sofisticado bairro): os nativistas, nascidos no país e comandados por Bill, o Açougueiro (Daniel Day-Lewis, tão assustador quanto fascinante com seu bigodão e um olho de vidro), e os imigrantes, liderados pelo Pastor Vallon (Liam Neeson). Em meio a um combate de punhos, porretes e facões, Bill mata o Pastor, deixando órfão o menino Amsterdam. Dezesseis anos depois, já na pele de Leonardo DiCaprio (em desempenho burocrático), Amsterdam ingressa nas fileiras do Açougueiro para se vingar, mas acaba acolhido como um filho.
Gangues de Nova York teve uma produção conturbada, porque o dinheiro foi acabando e a pressão para terminar, aumentando. "Os figurantes iam embora, os objetos de cena eram levados embora. Ainda tínhamos de filmar algumas coisas e não tínhamos certeza se conseguiríamos", contou o diretor ao crítico Richard Schickel no livro Conversas com Scorsese (editora Cosac Naify, 2011, tradução de José Rubens Siqueira). O cineasta queria lançar o filme com quatro horas, a produtora, a Miramax, queria duas horas e meia — ficou em 167 minutos. Perde-se tempo com a relação de paixão e desprezo entre Amsterdam e a ladra Jenny (Cameron Diaz), mas ainda assim o filme tem grandes momentos, como o retrato da corrupção dos policiais e políticos e a origem de seu vínculo com o crime e o plano-sequência magistral que mostra como foi forjada a união da América: os estrangeiros chegam ao porto, vão para a fila da imigração, são encaminhados ao recrutamento e embarcam de novo para defender "sua pátria" — no mesmo navio que traz caixões de soldados mortos na guerra. Teve 10 indicações ao Oscar, mas não ganhou nada: melhor filme, direção, ator (Daniel Day-Lewis), roteiro original (Jay Cocks, Steven Zaillian e Kenneth Lonergan), fotografia (Michael Baullhaus), edição (Thelma Schoonmaker), direção de arte e decoração de set (Dante Ferretti e Francesca Lo Schiavo), figurino (Sandy Powell), som e canção original (The Hands That Built America, do U2). (Indisponível no streaming)
13) A Última Tentação de Cristo (1988)
As notícias publicadas em ZH entre agosto e dezembro de 1988 (e gentilmente coletadas pela colega Debora Cabrera Spolavori) ilustram o tamanho da polêmica despertada por The Last Temptation of Christ, que, no Oscar, só concorreu ao prêmio de melhor direção, a despeito da comovente atuação de Willem Dafoe como Jesus, da belíssima fotografia de Michael Ballhaus, da hipnótica trilha sonora composta por Peter Gabriel e das qualidades do filme em si, estrelado também por Barbara Hershey (Maria Madalena), Harvey Keitel (Judas Iscariotes) e David Bowie (Pôncio Pilatos). Em 11/8 e 12/8, as manchetes eram "Madre Teresa contra 'A Última Tentação de Cristo'", "Para bispos, este filme é ofensa moral" e "A revolta dos religiosos" — esta vinha acompanhada de foto em que, em frente a cinema nos EUA, manifestantes carregavam cruzes e cartazes com as palavras "blasfêmia" e "boicote". Os detratores ficaram enfurecidos com o retrato humanizado de Jesus Cristo, que, durante a crucificação, alucina e imagina sua vida como um homem comum, casado primeiro com a prostituta Maria Madalena, depois com as irmãs de Lázaro, que lhes dá muitos filhos. No dia 8/9, na reprodução de uma entrevista, Martin Scorsese defende sua obra como "um ato de fé" e sem qualquer irreverência; é a história de um Jesus "cheio de dúvidas" — será que ele é mesmo o filho de Deus e o Messias? —, um filme sobre "a luta entre a carne e o espírito, a violência e o amor", tema recorrente em sua filmografia. Em 1°/10, o cardeal Ratzinger, futuro Papa, reclama da "falsidade histórica", desprezando o fato de que o roteiro assinado por Paul Schrader se baseia em um romance, do escritor grego Nikos Kazantzakis. Em 11/10, noticia-se um incêndio criminoso em um cinema da França; em 19/10, a proibição do filme por Israel; em 11/11, a retirada da programação do Festival do Rio por causa de ameaças assumidas por um "Grupo Terrorista em Defesa da Religião Católica"; em 16/11, véspera da estreia no Brasil, a gerência dos cines Baltimore e São João, em Porto Alegre, informa que haverá soldados da Brigada Militar e seguranças civis para garantir a segurança das sessões; em 19/11, registra-se que salas de Brasília, Rio, São Paulo, Ribeirão Preto e Belo Horizonte deixaram de exibir o título.
Os ataques também continham um pouco de humor involuntário. Matéria do dia 5 de novembro conta da petição da Sociedade Beneficente de Estudos da Filosofia no Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo a entidade, Scorsese pretendia "desmoralizar o cristianismo", e A Última Tentação de Cristo era "uma afrontosa discriminação que deve ser refutada com veemência, equivalente à que poderia ser manifestada diante de um filme que focalizasse o líder negro Martin Luther King como um tipo covarde, mentiroso, e casado homossexualmente com o pugilista Muhammad Ali". Por fim, em artigo publicado em 10/12, o escritor Janer Cristaldo lembrou: "Todo Index Prohibitorium é contraproducente, só serve para vender o que pretende proibir". (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube)
12) Caminhos Perigosos (1973)
No seu terceiro longa-metragem, Scorsese firmou os rostos, os cenários e os temas que se tornariam recorrentes em sua carreira. Na região ítalo-americana de Nova-York, Harvey Keitel interpreta Charlie (o nome do pai do diretor), um pequeno mafioso que acredita que "você paga seus pecados na rua, não na igreja". Atormentado por sua devoção ao catolicismo e a vida proporcionada por seu trabalho ilícito, o protagonista ainda precisa lidar com a imprudência intempestiva de seu melhor amigo, Johnny Boy — papel de Robert De Niro, em sua primeira parceria com o diretor —, que se recusa a arranjar emprego e deve muito dinheiro (gasto no jogo e na farra) a um agiota. O refúgio emocional de Charlie é Teresa (Amy Robinson), prima de Johnny Boy, mas ela também o fustiga, questionando a suposta integridade que ele diz manter.
"As pessoas reclamam da minha representação dos ítalo-americanos. Mas não posso fazer nada. Sinto muito. Aquilo é só a minha percepção do que eu vivia", disse o cineasta no livro Conversas com Scorsese. "Toda noite" ele ouvia o drama sobre as dívidas, os dilemas sobre o certo e o errado, as "famílias", a violência da selva urbana. São marcas registradas de Martin Scorsese presentes em Mean Streets, assim como a trilha sonora recheada de rock dos anos 1960 e 1970 (destaque para Jumpin' Jack Flash, dos Rolling Stones), a câmera lenta, a luz vermelha e o amor pelo próprio cinema — um passatempo da turma de Charlie, que vai assistir a Rastros de Ódio (1956), faroeste clássico de John Ford. (HBO Max)
11) Quem Bate à Minha Porta? (1967)
Rodado em preto e branco e com uma estrutura não linear na narrativa, o longa-metragem de estreia é assumidamente decalcado da nouvelle vague, movimento artístico do cinema francês capitaneado por nomes como François Truffaut, Jean-Luc Godard e Alain Resnais. Mas este cartão de visitas trazia impressas muitas das marcas do diretor estadunidense. A edição é de Thelma Schoonmaker, que a partir de Touro Indomável (1980) se tornaria sua montadora oficial, ouvimos rock — This Is the End, lançado pelo The Doors no mesmo ano — e, já na abertura de Who's That Knocking ath my Door, aparece sua mãe, Catherine Scorsese (1912-1997), que depois seria vista (ou ouvida, como em O Rei da Comédia) em um punhado de títulos. Ela prepara pão e o divide com seus filhos, em uma referência ao sacramento da eucaristia.
Criado nesse ambiente cristão, o protagonista interpretado por Harvey Keitel (ator de Martin Scorsese em outras cinco obras), J.R., vê-se afligido pela tentação da carne a partir do momento em que, na balsa que liga Nova York e Staten Island, conhece uma garota encarnada por Zina Bethune — filmada como se fosse uma figura angelical, com um foco de luz emoldurando seus cabelos loiros. No diálogo dos dois, Scorsese exibe seu fervor pelo próprio ofício, citando os faroestes Rastros de Ódio (1956) e O Homem que Matou o Facínora (1962), ambos de John Ford. Os beijos, acompanhados por uma câmera bem próxima, estão entre os mais lindos do cinema. E, em plena época da revolução sexual, o jovem cineasta surpreendia ao apresentar um personagem que não transa com uma mulher porque está apaixonado por ela — ele quer esperar o casamento. Mas não é um santinho: já se envolveu em brigas de rua, curte beber com os amigos e até cometer pequenos delitos ou brincar com armas de fogo. Essas cenas são costumeiramente escuras, em contraste com a luminosidade das interações com a namorada. A redenção está no amor, mas há mais uma provação pela frente: a moça revela que foi estuprada, provocando a rejeição de J.R. Décadas antes das discussões sobre a culpabilização das vítimas de violência sexual, a personagem de Bethune manda embora o protagonista vivido por Keitel depois que ele, arrependido, diz "eu te perdoo". (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video e Apple TV)
10) Cabo do Medo (1991)
Com ajuda do roteirista Wesley Strick, Scorsese tornou incandescente e transcendente a refilmagem de um clássico de 1962 assinado por J. Lee Thompson — os atores Gregory Peck, Robert Mitchum e Martin Balsam estão presentes nas duas versões, e Elmer Bernstein foi brilhante na reformulação da tensa trilha sonora composta pelo lendário Bernard Herrmann. Indicado ao Oscar de melhor ator, Robert de Niro apavora como Max Cady, o psicopata estuprador que, ao sair da cadeia, busca vingança contra seu advogado de defesa, Sam Bowden (Nick Nolte), casado com Leigh (Jessica Longe), sempre desconfiada da fidelidade do marido, e pai da adolescente Danielle (Juliette Lewis, concorrente ao Oscar de atriz coadjuvante).
Scorsese disse que Cape Fear é sobre "punição para tudo aquilo que excite sexualmente o ser humano, a bataha moral básica da ética cristã". Nesse sentido, Max Cady é o catalisador da sexualidade latente da filha adolescente. À época da estreia nos cinemas, o crítico José Onofre, em ZH, ofereceu outra rica leitura: a mitologia dos EUA é calcada no "dilema com que depararam os primeiros homens brancos a chegarem naquele território para recomeçar a vida: a construção da família ou a aceitação da solidão. É a grande metáfora da vida, a América em sua vastidão quase desabitada é o cosmos desafiante, surgindo a família como a solução de grupo que faça a mediação com o inexplicável e coloque as raízes da sociedade. Cabo do Medo é a batalha da família para expulsar a selvageria inconsciente do mundo". (Disponível para alguel em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube)
9) O Rei da Comédia (1982)
Escrito nos anos 1970, o roteiro de Paul Zimmerman foi visionário em sua sátira sinistra sobre a relação do público com as celebridades. Se hoje os fãs sentem-se "donos" de seus ídolos, a ponto de instituírem a cultura do cancelamento, em The King of Comedy um aspirante a comediante decide sequestrar o apresentador de um popular programa de entrevistas para ter seus 15 minutos de fama. Rupert Pupkin, o personagem principal, é interpretado por Robert De Niro, que, como em Taxi Driver (1976), faz um sujeito que não sabe distinguir bem a realidade da fantasia — Scorsese brinca com a percepção do espectador, embaralhando momentos de delírio nos acontecimentos. Jerry Lewis, que, naquele começo da década de 1980, voltava a aparecer no cinema após 10 anos de ausência, encarna o comandante do talk show, Jerry Langford.
Ignorado pelo Oscar, mas lembrado no Bafta, da Academia Britânica (ganhou o prêmio de roteiro original e concorreu nas categorias de diretor, ator, ator coadjuvante e edição), e na lista dos melhores do ano da revista francesa Cahiers du Cinèma (quinto lugar), O Rei da Comédia foi uma das inspirações para Coringa (2019), de Todd Phillips. (HBO Max, MUBI e Star+)
8) Os Infiltrados (2006)
Embora seja uma refilmagem — de Conflitos Internos (2002), filme rodado em Hong Kong por Andrew Lau e Alan Mak — e embora tenha trocado de cidade (o cenário agora é Boston, não mais sua amada Nova York), Martin Scorsese está em casa em The Departed. O diretor volta a ofertar um envolvente e nervoso drama criminal que também pinta um painel histórico dos Estados Unidos. Os protagonistas do filme andam ao mesmo tempo ao lado e fora da lei. Billy Costigan (papel de Leonardo DiCaprio) é um tira imiscuído na máfia irlandesa. Colin Sullivan (interpretado por Matt Damon) ingressou na polícia de Boston a mando do chefão do crime, Frank Costello (Jack Nicholson). Logo um estará à procura da identidade do outro, em uma caçada que toma rumos surpreendentes e traz, como de costume, a brutal exposição da violência.
Os Infiltrados narra a trajetória de Billy e Colin em paralelo, contrapondo a angústia e a solidão do primeiro ao estilo sedutor e calculista do outro, com atuações extraordinárias de DiCaprio e Damon. Entre eles, está um vilão talhado para Nicholson: malvado, obcecado por sexo, imprevisível e cheio de frases de efeito. A história de opostos e simetrias dos dois informantes (ou "ratos", para usar a gíria do meio) ilustra o mundo contemporâneo na visão de Scorsese, em que os limites entre o bem e o mal estão borrados, como disse, à época, em entrevista ao jornal britânico The Guardian. E onde a moralidade não existe, prossegue o cineasta, não há mais pecado, portanto, não há mais redenção. Nesse contexto, parece não haver espaço para um de seus temas maiores, a culpa católica. Não é só por floreio verbal que Frank Costello diz a dois padres que Deus não manda por ali. As cruzes, por sua vez, estão viradas na letra X, uma homenagem ao filme de gângster Scarface (1932) e um símbolo da morte, vista em janelas, paredes, no chão e até na iluminação. Assim, é duplamente significativo o título original, referência "aos fiéis que partiram". Recebeu o Oscar das categorias de melhor filme, direção, roteiro adaptado (William Monahan) e edição (Thelma Schoonmaker). Também concorreu em ator coadjuvante (Mark Wahlberg). (Amazon Prime Video e HBO Max)
7) A Época da Inocência (1993)
The Age of Innocence é a terceira versão para o cinema do romance homônimo da escritora estadunidense Edith Wharton (as anteriores foram por Wesley Ruggles, em 1924, e por Philip Moeller, em 1934). Narrada pela atriz Joanne Woodward, a trama se passa na alta burguesia de Manhattan, em Nova York, na década de 1870. É nessa sociedade engessada por rígidos padrões morais que o jovem advogado Newland Archer (Daniel Day-Lewis), noivo da bem-nascida May Welland (Winona Ryder), apaixona-se por uma prima dela, a condessa Olenska (Michelle Pfeiffer), que caiu em desgraça por causa do divórcio do antigo marido. Em segredo, o casal se vê num impasse: assumir o relacionamento ou submeter-se às regras sociais — que permitem uma analogia entre a aristocracia e a máfia. Neste romance condenado, um diretor tão habituado à violência e à brutalidade surpreendeu ao mostrar sensibilidade e delicadeza: um simples toque de mãos entre os amantes tem uma intensidade vulcânica.
Inspirado em obras do italiano Luchino Visconti, como Sedução da Carne (1954) e O Leopardo (1963), e visualmente exuberante, A Época da Inocência ganhou o Oscar de melhor figurino (Gabriella Pescucci) e disputou os prêmios de atriz coadjuvante (Winona Ryder), roteiro adaptado (Jay Cocks e Martin Scorsese), direção de arte e decoração de set (Dante Ferretti e Robert J. Franco) e música original (Elmer Bernstein). (Disponível para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube)
6) Assassinos da Lua das Flores (2023)
Pela primeira vez em um longa-metragem, depois do curta The Audition (2015), Martin Scorsese reúne os dois atores com quem mais trabalhou. É a 10ª colaboração de Robert De Niro, que deu início à longeva parceria há 50 anos, com Caminhos Perigosos. E a sexta de Leonardo DiCaprio, que contracenara com De Niro há 30 anos, em O Despertar de um Homem (1993), de Michael Caton-Jones. Só por esse encontro Killers of the Flower Moon já seria um dos eventos cinematográficos da temporada. Mas há muitos outros atrativos nas três horas e 26 minutos deste filme escrito por Scorsese e Eric Roth a partir do homônimo livro-reportagem de David Grann.
A exemplo de Os Bons Companheiros, Cassino, Gangues de Nova York, Os Infiltrados e O Irlandês, trata-se de um policial que permite traçar um painel histórico dos Estados Unidos e examinar a violência endêmica de sua sociedade. Em foco, desta vez, estão a ganância e o racismo que levaram homens brancos a exterminar indígenas Osage, no Estado do Oklahoma, na década de 1920 — a investigação das mortes ajudou a consolidar o FBI, a polícia federal estadunidense, que tinha surgido naqueles tempos. Esse povo nativo tinha sido expulso de suas terras para uma região rochosa e infértil, mas eles acabaram descobrindo petróleo (como Scorsese reconstitui com seu característico uso da câmera lenta) e enriquecendo (como o diretor mostra mimetizando os cinejornais daquela época). Os Osage ousaram prosperar, despertando o ódio e a cobiça, como aconteceu com a rica comunidade negra de Tulsa, no mesmo Oklahoma, massacrada em 1921 por uma multidão branca (esse episódio também é referido em Assassinos da Lua das Flores).
DiCaprio interpreta Ernest Burkhardt, ex-soldado que é acolhido pelo tio, William Hale (De Niro, em uma atuação monumental), o Rei, um sujeito de duas caras: posa de amigo dos Osage, mas na verdade só está interessado em se apossar da sua fortuna. Ernest vai se casar com uma indígena, Mollie (Lily Gladstone, o coração do filme), mas, como os típicos personagens scorsesianos, viverá sob o tormento, sublinhado pela música de Robbie Robertson. Tem o corpo e a alma cindidos — "Quase amo dinheiro tanto quanto amo minha mulher", admite. Não há mistério sobre para onde a trama vai, e inclusive há um pouco de reiteração na parte que antecede o epílogo _ mas esse epílogo, que conta com a participação do próprio diretor, é absolutamente surpreendente. Com um misto de criatividade e autocrítica, Scorsese aponta tanto para a dessensibilização das pessoas perante os crimes que ajudaram a formar o país quanto para a espetacularização da violência. (Em cartaz nos cinemas a partir de 19/10)
5) O Lobo de Wall Street (2013)
Na casa dos 70 anos, Scorsese dirigiu um filme com três horas de duração capaz de provocar inveja nos cineastas mais jovens pelo frescor narrativo e pela falta de pudores — desde as quebras da quarta parede às cenas que envolve anões sendo arremessados em um alvo ou carreiras de cocaína sendo aspiradas do ânus de uma prostituta. Como escreveu o crítico Daniel Feix em ZH, The Wolf of Wall Street "é uma comédia que transforma o universo da especulação financeira numa espécie de Velho Oeste, com códigos de ética típicos de um vale-tudo no qual a única coisa em jogo é a imposição individual". Trata-se de uma adaptação da autobiografia de Jordan Belfort, sujeito bonachão de família pobre que, graças à lábia sedutora e aos discursos épicos, construiu um império: nos anos 1980 e 1990, atraiu investidores às maiores furadas e arregimentou um exército de jovens corretores, alimentados pelo sonho do enriquecimento a partir da venda de ações e títulos na bolsa de valores.
Leonardo DiCaprio arrasa no papel do cínico, inescrupuloso e hedonista Belfort, protagonista que reflete o culto da sociedade pelo dinheiro, pelo poder e pelo sucesso, a despeito do caráter. Em torno do magnata onipotente que vai se desprendendo do mundo real, ergue-se um ultrajante circo de torpor coletivo embalado por sexo e drogas em doses fartas. Jonah Hill interpreta Donnie Azoff, o segundo na hierarquia, uma figura entre o exótico e o engraçado — vide sua masturbação aos olhos de todos os convidados de uma festa, incluindo a sua esposa, quando surge a personagem encarnada por Margot Robbie, a sensualíssima Naomi (que protagoniza uma das cenas mais pausadas do cinema, aquela no quarto da filha que teve com Belfort).
O Lobo de Wall Street foi indicado ao Oscar nas categorias de melhor filme, direção, ator (Leonardo DiCaprio), ator coadjuvante (Jonah Hill) e roteiro adaptado (Terence Winter). (Amazon Prime Video e HBO Max)
4) Touro Indomável (1980)
Em um preto e branco deslumbrante, o cineasta retrata a ascensão e a queda do boxeador Jake LaMotta (1922-2017) — para a fase decadente do personagem, Robert De Niro engordou 25 quilos. A violência com que moía adversários era espelhada no convívio com a jovem amante e depois esposa, Vickie (Cathy Moriarty), torturada por seu obsessivo ciúme, e com o irmão, Joey (Joe Pesci), seu saco de pancadas permanente. Certa vez, o verdadeiro LaMotta, após ver o filme, perguntou a Vickie se ele era assim mesmo. "Você era muito pior!", respondeu sua ex-mulher.
A cena da luta pelo título contra Sugar Ray Robinson consegue ser a um só tempo linda, violenta e repugnante. Mostra a incapacidade do protagonista de reconhecer a derrota. Sustentado pelas cordas, o pugilista permite que Robinson bata até desfigurar seu rosto e jorrar sangue pelo ringue e na plateia — mas, como LaMotta provoca ao final, ele nunca caiu.
Raging Bull venceu o Oscar nas categorias de melhor ator (Robert De Niro) e edição (Thelma Schoonmaker) e foi indicado também a melhor filme, direção, ator coadjuvante (Joe Pesci), atriz coadjuvante (Cathy Moriarty), fotografia (Michael Chapman) e som. (Amazon Prime Video e canal Telecine do Amazon e do Globoplay)
3) Os Bons Companheiros (1990)
Se na trilogia O Poderoso Chefão (1972-1990) Francis Ford Coppola consagrou a representação arquetípica copiada pelos mafiosos da vida real, Scorsese focou no baixo e no médio escalão, os homens que precisam sujar as mãos, o trabalhador, enfim (essa oposição fica evidente na última cena de O Irlandês, que remete à última cena da parte I do clássico de Coppola: enquanto Michael Corleone manda fechar a porta na cara da esposa, abandonando seus últimos resquícios de humanidade para se tornar, de fato, o poderoso chefão, o matador Frank Sheeran, fragilizado e sequioso por calor humano, pede para a enfermeira deixar entreaberta a porta de seu quarto no asilo).
Em Goodfellas, o cineasta adapta um livro-reportagem assinado por Nicholas Pileggi. Ray Liotta vive Henry Hill, sujeito que desde criança idolatra gângsteres proeminentes do bairro, como Jimmy Conway (Robert De Niro), Paulie Cicero (Paul Sorvino) e o insano e sádico Tommy DeVito (Joe Pesci). Seduzido por aquele ambiente de poder e glamour, o pequeno marginal ascende na organização e embarca numa viagem sem volta, que Scorsese retrata com maestria — do vocabulário (contaram mais de 300 vezes em que é dito o palavrão fuck), à encenação (o plano-sequência na entrada do clube noturno dos mafiosos é algo espetacular), além de colocar sua própria mãe no papel de mãe do endiabrado Tommy.
Os Bons Companheiros rendeu a Scorsese o Leão de Prata de melhor diretor no Festival de Veneza, recebeu o Oscar de ator coadjuvante (Joe Pesci) e disputou as estatuetas de melhor filme, direção, atriz coadjuvante (Lorraine Bracco), roteiro adaptado (Nicholas Pileggi e Scorsese) e edição (Thelma Schoonmaker). (HBO Max)
2) O Irlandês (2019)
A revisão fez crescer as virtudes de The Irishman, um dos títulos mais injustiçados de Scorsese no Oscar — não foi premiado em nenhuma das 10 indicações: melhor filme, direção, ator coadjuvante (Al Pacino e Joe Pesci, ambos mais merecedores da estatueta que acabou conquistada por Brad Pitt, de Era uma Vez... em Hollywood), roteiro adaptado (Steven Zaillian), fotografia (Rodrigo Prieto), edição (Thelma Schoonmaker), design de produção (Bob Shaw e Regina Graves), figurino (Sandy Powell) e efeitos visuais.
Ao longo de três horas e meia, o cineasta costura um panorama político, policial e social dos Estados Unidos entre os anos 1950 e os 2000. O fio condutor é Frank Sheeran, o Irlandês, personagem interpretado por Robert De Niro como nos seus bons tempos: com um misto de brutalidade e fragilidade, um olho para Deus, o outro para o Diabo, mas sem grandiloquências desnecessárias — seu sofrimento é quase silencioso, sua violência chega a ser discreta. Ele precisa dessa discrição, afinal, trata-se de um sujeito que ganha a vida "pintando casas", o apelido insuspeito dado ao ofício dos matadores da máfia italiana. Frank é um homem ciente de que "três pessoas só guardam um segredo quando duas delas estão mortas". O veterano da Segunda Guerra Mundial vai se envolver com chefões como Russell Bufalino (papel em que o outrora frenético e irascível Joe Pesci dá lugar a um tipo ainda mais perigoso, porque frio, contido, dissimulado e que nunca fala com o coração, na verdade, nunca diz, com palavras, o que realmente está dizendo); vai testemunhar a frustração dos mafiosos diante da revolução cubana liderada por Fidel Castro (que acabou com os lucrativos cassinos); vai assistir à ascensão e queda do clã Kennedy (John, o presidente, e Robert, o procurador-geral, ambos supostamente assassinados por traírem a instituição criminosa); e vai, principalmente, trabalhar como capanga de Jimmy Hoffa (Al Pacino, dosando intransigência, comicidade, afeto e explosão), que comandou o bilionário sindicato dos transportadores de carga americanos entre 1957 e 1971 e que, quatro anos depois, quando tentava retomar seu poder, desapareceu, sob circunstâncias investigadas à exaustão mas nunca esclarecidas.
O Irlandês "desvenda" esse mistério, mas por uma perspectiva particular: o roteiro baseia-se nos depoimentos que Frank Sheeran deu ao ex-promotor e advogado de defesa Charles Brandt. Scorsese deixa claro isso desde o primeiro plano, quando, após um travelling da câmera que faz lembrar outros de seus célebres planos-sequência, encontramos o velho Frank em um asilo. É ali que ele, sentado em uma cadeira de rodas, começará a narrar a sua versão da história, as coisas que nunca esqueceu e as coisas que preferia ter esquecido, temperadas por lapsos e omissões. A memória é um fardo, mas também é aquilo que permite medirmos a nós mesmos — ao olharmos para trás e vermos os passos que trilhamos _ e que nos mantêm vivos perante os outros — a certa altura, Frank conta que Hoffa, "nos anos 1950, era maior do que Elvis, e nos 1960, era maior do que os Beatles", mas, tanto tempo depois de sua morte, seu nome já não diz nada para uma enfermeira que cuida do gângster aposentado: "Jimmy quem?". Pode ser também um comentário sobre o presenteísmo e o imediatismo das novas audiências, um recado para os espectadores apressados que buscam apenas o som e a fúria de mentirinha das aventuras Marvel. (Netflix)
1) Taxi Driver (1976)
Desde a primeiríssima cena se percebe que estamos diante de uma obra ímpar e antológica: o táxi amarelo atravessando a fumaça, a cidade de Nova York vista sob a perspectiva distorcida do Travis Bickle encarnado por Robert De Niro, a música do grande Bernard Herrmann (o mesmo de Cidadão Kane e Psicose) alternando o soturno e o terno.
Na trama escrita por Paul Schrader, De Niro interpreta um veterano da Guerra do Vietnã que tenta se recompor existencial e socialmente dirigindo um táxi pelas madrugadas de Nova York. O contato com o submundo da cidade desperta nele o isolamento e a revolta. Cada vez mais paranoico, Travis, ao mesmo tempo, se transforma em motor e vítima de um ciclo de violência, encarnando um amoral anjo vingador que vê numa prostituta de 12 anos, Iris (Jodie Foster), a chance de redenção. O protagonista também é fissurado por Betsy (Cybill Shepherd), que trabalha no comitê eleitoral do senador Palantine, candidato à presidência que promete mudanças sociais drásticas. Essa aproximação com a política vai ajudar o filme a discutir como pode ser tênue a linha que, aos olhos do público e da imprensa, separa um herói de um vilão.
Para além da parceria com De Niro e de ser ambientado na sua Nova York, Taxi Driver tem várias marcas do cinema de Scorsese. É a história de um homem contra todos — e a combinação da condição psicológica do personagem com a degradação do ambiente a seu redor acabou influenciando títulos como Um Dia de Fúria (1993) e Coringa (2019). É um filme que não tem pudores quanto à exposição da violência — vide Travis Bickle, de moicano e jaqueta militar, despejando sua fúria por meio de uma pistola em uma sequência sanguinária. Conta com um monólogo antológico do protagonista — "Are you talking to me?" (Você está falando comigo) — à frente do espelho, a exemplo de Touro Indomável e O Aviador. E traz o próprio Scorsese como ator, na pele de um passageiro com vontade de matar a esposa infiel. Ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e concorreu em quatro categorias do Oscar: melhor filme, ator (Robert De Niro), atriz coadjuvante (Jodie Foster, que tinha apenas 13 anos quando atuou) e música original (em uma indicação póstuma de Bernard Herrmann). (HBO Max e Looke)