Elas estão por lá já faz entre 500 milhões e 600 milhões de anos, muito antes de haver sinal de vida sobre qualquer um dos continentes. Mas essas rochas de origem sedimentar, que se elevam a até 100 metros, no caso das Guaritas, e a 160 quando se fala na Pedra do Segredo, no interior de Caçapava do Sul, só nos últimos anos começaram a despertar a atenção de aventureiros, turistas e até dos próprios moradores. Mais ainda: despontaram como alternativa para o desenvolvimento regional numa área em que oito das nove cidades experimentaram queda de população segundo o último Censo do IBGE.
Um salto para tanto foi dado em 2020: Caçapava virou “Aspirante a Geoparque Unesco”. O que significa isso? Ser um Geoparque reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) equivale a tornar-se Patrimônio Mundial da Humanidade, como são as vizinhas Missões Jesuíticas, por exemplo, ou as reservas da Biosfera. No Brasil, existe apenas um desses reconhecidos, o Araripe Geoparque Mundial Unesco, no Ceará. Por aqui, há outros dois candidatos: os Cânions do Sul, envolvendo sete municípios do RS e de SC, e o território da Quarta Colônia, na região central gaúcha.
O primeiro passo importante para dar visibilidade a essa maravilha natural no centro-sul do Estado ocorreu em 2015, quando o município alçou-se ao título de Capital Gaúcha da Geodiversidade, concedido pela Assembleia Legislativa. Até novembro de 2021, a equipe do Geoparque Aspirante entregará um dossiê completo à Unesco e, não fosse a pandemia, em abril de 2022 receberia um comitê científico para avaliar o potencial. Se for certificado, se unirá a outros 169 existentes em 44 países, um movimento novo, dos últimos 20 anos. E então poderá atrair muito mais dos que os 600 a 700 turistas que o visitam no verão e ir além do laboratório a céu aberto que as universidades do país reconhecem como perfeito para estudos geológicos.
— O geoturismo é turismo de conhecimento. A pessoa quer fazer a trilha, tirar a foto, mas nessa atividade ela ganha conhecimento sobre história natural, vai entender como aquele geomonumento se formou e aprender também sobre a biodiversidade. Por aqui está o maior cactário a céu aberto da América do Sul, por exemplo — explica o professor da Unipampa em Caçapava Felipe Guadagnin, 37 anos, geólogo com mestrado e doutorado em Geociências pela UFRGS.
Se você conversar com Felipe, com Ana Paula Souza Corrêa, 34, geóloga e sócia-fundadora da Associação para o Desenvolvimento do Geoturismo em Caçapava do Sul (Ageotur), ou com André W. Borba, 45, geólogo e professor da UFSM, integrante da equipe de implantação do Geoparque e o primeiro a falar na ideia uma década atrás, perceberá uma paixão que é capaz de mover montanhas, com o perdão do trocadilho. Com a Ageotur e as universidades às quais são vinculados, eles conseguiram mobilizar os caçapavanos, incluindo aí o poder público, e já enxergam os primeiros frutos.
— Metade do dossiê para consolidar o Geoparque é de conteúdo geológico, já que é preciso que ele seja considerado um patrimônio geológico de nível internacional, e Caçapava tem rochas que só existem ali em termos de América do Sul, o que a credencia. O motivo é geológico, mas a construção é feita com a comunidade: conservando, melhorando a educação, estimulando empreendedores para gerar mais trabalho e renda — acrescenta André.
Vamos aos sinais: nos últimos tempos, surgiram duas novas pousadas no município – o Guaritas Hostel e a Pousada Villa do Segredo. Um cervejeiro local elaborou um rótulo especial da Cerveja Artesana, reproduzindo uma preguiça-gigante, animal extinto há mais de 12 mil anos, cujos fósseis foram encontrados em diversos arroios de Caçapava. Próximo às Guaritas, a Novelaria Santa Marta criou um roteiro em que o turista pode acompanhar o processo da lã, do cordeiro ao tingimento feito de modo sustentável.
Os artesãos, aliás, começam a reproduzir temas da biodiversidade, como os cactos, em suas obras. Neste ano, com verbas de emendas parlamentares, deve ser construído um mirante nas Guaritas. A Ageotur também pretende integrar outros empreendimentos, como o olivoturismo, além de reforçar a observação do céu e a astrofotografia. Falta a implantação de um centro interpretativo, um lugar para receber e orientar os turistas e oferecer experiências audiovisuais, mas a prefeitura até já garantiu um terreno para isso.
— É para não deixar o jovem ir embora, para dar uma oportunidade. Os empreendedores começam a ver a mobilização e querem investir. Sem contar que é o tipo de turismo possível na pandemia ou pós-pandemia. Queremos muito conquistar o turismo doméstico e os argentinos que passam pela BR-290 — pontua André.
Seria uma forma de sublimar a origem do topônimo da cidade – Caçapava, em tupi, significa travessia ou passagem na mata.
"Trabalho de formiguinha"
Ana Paula Souza Corrêa, 34 anos, nasceu em Caçapava do Sul. A opção pela Geologia, na universidade, era natural para a guria que fazia escalada em rocha desde os 15. Mestranda em Geografia na UFSM, ela virou uma espécie de “projeto-piloto” depois que Caçapava tornou-se Geoparque Aspirante da Unesco.
Formada em 2017, ela fez o curso técnico em guia de turismo do Senac em 2018 e agora dedica-se ao geoturismo. Nas trilhas e caminhadas, com grupos de no máximo cinco pessoas, leva material ilustrativo e vai dando sua “aula” in loco. Há os aventureiros atraídos para a atividade física, para o desafio, mas mesmo esses aceitam muito bem as explicações:
— As pessoas hoje buscam experiências únicas, autênticas, e podemos oferecer isso — diz.
Ana Paula cresceu enxergando de longe essas rochas. Hoje mora com vista para a Serra do Segredo, a quatro quilômetros do que ela chama de “a Meca da Escalada”.
— O Geoparque tem a ver com meu estilo de vida. Era um lugar sem perspectiva. Mas agora as pessoas estão enxergando no turismo o futuro, criando parcerias, conversando. Precisamos que todos falem a mesma língua, que trabalhem na divulgação, valorização e preservação. A pessoa se vê parte daquilo. É um trabalho de formiguinha.
O impacto da certificação
No Villuercas Ibores Jara, na Extremadura (Espanha), certificado como geoparque pela Unesco em 2011, o número de empreendimentos à sua volta passou de nove para 90.
Na Croácia, antes do Geoparque Idrija, os turistas gastavam seis horas na visitação àquele território antes da certificação pela Unesco. Agora, a média é de 1,5 dia.