Documento final do encontro entre os líderes sul-americanos, o "Consenso de Brasília" pode ser caracterizado de diferentes maneiras, menos como um... consenso.
A reunião idealizada pelo presidente Lula para relançar a integração regional está hoje mais no âmbito do romantismo e da idealização do pensamento de esquerda dos anos 1970 e 1980 do que lastreada pela realidade da terceira década do século 21. O resultado do encontro foi a exposição das fraturas ideológicas atuais do subcontinente.
A "onda rosa" que varreu a América do Sul na primeira década dos anos 2000 é bem diferente do fenômeno de hoje. Por vários motivos, mas, principalmente, porque a esquerda atual é menos um bloco monolítico do que Lula imagina e porque, simplesmente, o mundo mudou.
Não se pode falar de uma esquerda apenas: as forças que apoiam Gabriel Boric, no Chile, são diferentes das que sustentam Alberto Fernández, na Argentina, que são distingas das de Lula, no Brasil. E nada melhor (ou pior) do que Nicolás Maduro, da Venezuela, para estabelecer a diferença.
Além disso, há importantes países da região governados por direita e centro direita - Uruguai (Luis Lacalle Pou), Equador (Guillermo Lasso) e Paraguai (Mario Abdo Benítez que será suscedido por Santiago Peña).
Essas divisões inviabilizam a proposta de retomada da União das Nações Sul-americanas (Unasul), um bloco que já nasceu contaminado pela ideologia - no caso de esquerda. A ideia surgiu em 2008, patrocinada por Lula e Hugo Chávez, em contraposição à suposta influência dos EUA no subcontinente. Era o ano seguinte à realização do Fórum Social Mundial em Caracas, que se tornara vitrine do bolivarianismo e cujo mantra bradava "não ao imperialismo". Com os novos ventos políticos soprando à direita, a partir de 2015, o grupo de países, que nunca apresentou uma ação concreta, foi se esvaziando a cada nova agenda política que vencia uma eleição: Colômbia, Brasil, Peru, Paraguai e Chile suspenderam suas participações.
Os tempos hoje também são outros: a covid-19 e a guerra na Ucrânia aprofundaram desigualdades e criaram novas urgências domésticas para cada país, que colocou a integração regional mais para trás na fila de prioridades. E a desaceleração da China deixou os anos de vacas gordas das commodities na primeira década dos anos 2000.
Um pouco dessas divisões que afloraram em Brasília nesta semana já haviam ficado claras na viagem de Lula à Argentina e ao Uruguai, em janeiro. Se o Mercosul, com quatro membros, enfrenta dificuldades para olhar para o mesmo lado, imagine um bloco que, idealmente, seria composto por 11 países. A Unasul é hoje um fenômeno datado, que ficou para trás e que não resiste à alternância de poder.