Não pretendo correr o risco de ser injusto com quem tenta fazer o melhor e eventualmente se atrapalha porque, afinal, errar é da natureza humana. Ficaria fácil e confortável generalizar para defender a tese, e pretendo escapar desta cilada. Há dirigentes que têm boas ideias, mas tropeçam no entorno amador que cobra decisões sumárias para debelar crises. Neste quesito, nada é mais prosaico do que demitir treinador. Entrega-se uma cabeça, quem entrega poupa a sua. Há um histórico no futebol brasileiro que sinaliza a pouca ou nenhuma evolução no sentido de profissionalizar o trato com produto tão nobre, o que significa que o tal produto futebol restará depreciado na hora de comercializá-lo.
No meio da semana que passou, por exemplo, os dirigentes dos clubes da Série A se reuniram em congresso técnico e revogaram a medida que pretendia dificultar a ciranda dos treinadores. O faroeste está liberado sem pudores como era até o penúltimo Brasileirão. O argumento foi defendido pelo presidente do Corinthians — Duílio Monteiro Alves é filho de um dos mais inventivos dirigentes do futebol brasileiro dos anos 1980. Adílson Monteiro Alves presidia o Corinthians quando se estabeleceu a Democracia Corintiana.
Duílio vinha dando boas entrevistas e falando em profissionalismo, mas ficou pelo caminho, porque o fardo de enfrentar ameaças de setores de torcidas organizadas parece ter pesado demasiado às suas costas. Quase simultaneamente, o dirigente propôs a volta ao pandemônio anterior e demitiu Sylvinho. O treinador estava sob intensa pressão e perdeu de virada o clássico para o Santos no Paulistão. Na terceira rodada do campeonato, o Corinthians mandou embora seu técnico.
A cirurgia poderia ter sido feita na virada do ano, para que o trabalho em pré-temporada já começasse com outro conceito. Não. Sylvinho comandou o processo todo de início de ano e agora está fora. Segundo o presidente corintiano, melhor seria derrubar a restrição à troca de treinadores porque ela não funcionou, já que havia uma brecha que autorizava quantas trocas fossem caso se tratasse de comum acordo entre as partes.
Ora, como assim? A ideia original proposta pela CBF não previa a vírgula que transformou demissão de treinador em pantomima. É nesta hora que se percebe a dificuldade atávica de avançar na responsabilidade dos dirigentes quanto ao projeto proposto ao treinador. A medida só não deu certo porque os dirigentes dos clubes acresceram a exceção neutralizante que instituiu o tal comum acordo. Logo, os dirigentes dos clubes brasileiros puseram abaixo a medida que eles mesmos trataram de neutralizar sob o argumento de que ela não funcionou.
Coisas desta natureza é que me levam a desacreditar da formação bem-sucedida de uma liga, tal como existe na Inglaterra. Sempre haverá um ou mais dirigentes que se deixarão levar pelos tapinhas nas costas de assessores e conselheiros no jantar depois de um jogo vencido supostamente porque o árbitro entrou pressionado por uma entrevista colocando-o sob suspeição antes da partida.
O elogio fácil em meio a um ambiente festivo é sedutor. O autor da façanha passa por malandro, esperto, atilado, uma raposa sábia se sobressaindo porque conhece as maldades do mundo. Reconheço que é difícil para um presidente de clube grande adotar novos procedimentos de gestão que causem estranheza a quem está acostumado com o de sempre. Um dirigente precisa ter alianças políticas no conselho, e perdê-las por arroubos inovadores pode custar o projeto todo de poder.
Por isso se repetem tanto as trocas de treinador, as entrevistas condicionando arbitragem, as palavras fortes lançando suspeita sobre a honra alheia, um combo de atitudes que representam, literalmente, jogar para a torcida. Quem haverá de quebrar esta cultura?
Romildo Bolzan Júnior, por exemplo, tentou fazer a Primeira Liga reunindo clubes de diversas regiões. Pretendia mostrar à CBF que os clubes são capazes de gerir uma competição própria. Na prática, tudo desmoronou na primeira exigência de um presidente do Flamengo que queria valores diferentes de televisionamento para o clube porque, afinal, Flamengo é Flamengo. O mais perto que o futebol brasileiro já esteve de ter unidade entre os clubes foi com o Clube dos Treze. A entidade durou bastante tempo, mas não conseguiu sobreviver às fraturas de uma luta interna pelo comando. Então, leitor e leitora, pouco ou nada vai avançar na ideia de gestão convicta e profissional num projeto que coloque o olhar além do curto prazo. Neste momento, inclusive, fica ainda mais difícil porque o baronato do dinheiro estabelecido por Flamengo, Palmeiras e Atlético-MG se desgarrou dos outros gigantes do futebol brasileiro.
Como não há virgens no baile, entre os treinadores também não há consenso sobre a medida que pretendia proteger sua atividade. Com as devidas exceções, grande parte talvez entendesse a restrição de clubes por divisão e temporada como uma diminuição de mercado de trabalho. A multa rescisória garante alguma estabilidade quando vem a demissão. Logo o demitido estará na condição invertida, ele é que entrará no lugar de outro profissional que perdeu o emprego. Na ciranda insana que põe cabeças em bandejas de prata, sempre haverá um clube demitindo e contratando. É assim que a banda toca. É assim que a roda gira.
Vitinho
Na primeira vez em que o Flamengo jogou com time titular no Campeonato Carioca, estreando o técnico Paulo Sousa, a vitória foi confortável, 3 a 0 contra o Boa Vista em Volta Redonda. Seriam três pontos óbvios diante da diferença técnica entre os times. No entanto, o português impactou pelas decisões que tomou para formatar a equipe.
Havia em campo três zagueiros, Pedro começou como titular, Marinho estreou no corredor direito e, especialmente, um jogador que esteve por ser negociado virou capitão e deu assistência para todos os gols do jogo. Vitinho, aquele mesmo que começou no Botafogo, atuou no Inter e fez dois gols na Arena na reta final do rebaixamento gremista em 2021, foi o melhor em campo de braçadeira e meia baixa. Bruno Henrique ficou no banco.
Neste domingo, tem Fla-Flu no Engenhão. Se ganhar o clássico, Paulo Sousa ganha salvo-conduto para novos experimentos. Perdendo, passará por inventor. É assim que a banda toca. É assim que a roda gira.