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O economista Bernardo Nunes vive na Escócia, onde estuda o assunto que deve dominar o debate político neste ano: a reforma da previdência. A partir de experiências europeias, o gaúcho critica a proposta do governo e afirma que as empresas deveriam participar da organização dos sistemas de aposentadorias dos funcionários.
De que maneira a população deve ser preparada para a aposentadoria?
Há duas maneiras. Uma possibilidade é tornar as pessoas mais educadas em relação a suas finanças. Voluntariamente, irão poupar para ter renda lá na frente. Aumenta-se o conhecimento financeiro. O problema é que esse método leva tempo. Testes científicos mostram que, mesmo com educação, as pessoas têm barreiras comportamentais. Pode haver alguém bem educado financeiramente, mas com problemas de autocontrole, de impaciência. São questões emocionais que fazem com que essas pessoas não cuidem de suas finanças.
A via da educação financeira é longa e tem se mostrado pouco efetiva para fazer esse movimento. Os países querem evitar cenário em que a população seja pobre e também esteja doente. Na Europa, há pessoas mais velhas e cada vez mais doentes, mas com poupança para comprar medicamentos ou pagar ajudantes.
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Qual o outro método?
Participei de programa que olhou para Holanda, Suécia e Reino Unido. São situações econômicas bem diferentes da brasileira, mas que passaram pelo mesmo desafio demográfico que o nosso. Esses países não se basearam unicamente na via da educação financeira. Criaram sistemas que chamamos de "segundo pilar". O INSS, que é proporcionado pelo governo, é o primeiro. O segundo é o que chamamos de complementar no Brasil.
O que fizeram em Reino Unido, Holanda e Suécia foi aumentar o segundo pilar, e não por meio da educação financeira. Na Suécia e na Holanda, quando você começa em um emprego, é inscrito em plano de previdência. Todos os meses, de maneira automática e simples, parte do contracheque vai para esse plano de previdência dentro de regime de capitalização.
As pessoas podem retirar o dinheiro desse segundo pilar ou fica paralisado?
No modelo de Suécia, Holanda e Reino Unido, que têm os melhores sistemas de previdência, não há liquidez. No modelo americano, no segundo pilar, é possível com uma penalidade. Há problemas nos Estados Unidos porque as pessoas pensam em retirar o dinheiro para comprar uma casa, por exemplo. Problemas de autocontrole geram o problema do saque.
Quem gerencia o segundo pilar?
Como o empregador é obrigado a oferecer o plano, tem de contratar um gestor externo.
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Estamos em situação em que talvez a via da educação financeira não tenha tempo hábil. Os planos que chamamos de ocupacionais, do segundo pilar, começaram a ficar cada vez mais famosos nos anos 1970 e 1980. Começaram como benefício definido na Europa e nos Estados Unidos. Os planos foram criados para que as empresas tivessem mais flexibilidade para demitir funcionários mais velhos. As reformas, em Reino Unidos, Suécia e Holanda, foram consolidadas na década de 1990.
É possível implantar esse modelo no Brasil?
Para implantar o modelo de segundo pilar, é preciso que a constituição do país permita que o sistema não se torne apenas complementar, e vire parte da seguridade social. No Brasil, um dos problemas é que, segundo a Constituição, a previdência no segundo pilar é complementar e de caráter facultativo. Não conseguiremos usar os modelos sueco e holandês no curto prazo porque teríamos de fazer a mudança constitucional.
No entanto, o modelo britânico é possível, porque não impõe que a contribuição para o plano seja obrigatória. É obrigatório, sim, que todos os empregadores ofereçam os planos, mas que os empregados decidam se permanecerão no sistema. Em vez de pedirem para entrar, pedem para sair. O problema é que fundações começaram a inscrever no Brasil automaticamente os funcionários nos planos.
Como são organizadas na Europa as políticas anticorrupção desses planos?
No Reino Unido, existiram vários escândalos nos fundos de pensão nos anos 1990. Essa é uma das razões pelas quais houve maior demora para resolver o problema na comparação com Suécia e Holanda. Foram escândalos mais corporativos. A legislação brasileira de previdência complementar tem muitos limites. Os mecanismos são transparentes.
Escândalos como os que ocorreram no Reino Unido não seriam factíveis no Brasil por conta da transparência que existe. No país, o que poderia existir é a questão de sindicatos e a influência política sobre fundações maiores, principalmente aquelas ligadas a empresas públicas. Teríamos de criar mecanismo contra corrupção por conta da influência dos fundos de pensão e de sindicatos sobre os planos. Em Holanda e Reino Unido, o número de sindicatos é bem menor. É óbvio que no Brasil existe lobby de sindicalistas.
Você vê movimento do governo brasileiro para colocar em pauta uma reforma nesses moldes?
Minha tese de doutorado foi sobre previdência, com foco na Europa. Mas, quando apresentei o trabalho no Brasil, vi que as perguntas eram sobre o primeiro pilar. Gastamos muita energia falando sobre isso. Para solucionar o problema no futuro, deveríamos focar no segundo. Não vejo isso no cenário brasileiro. Com o novo governo, que não tem ambição de reeleição, é mais fácil ter mudanças de ruptura. Mas não percebo discurso que aponte para desenvolvimento do segundo pilar. Se olharmos para práticas de sucesso internacionais, veremos que o problema foi solucionado por aí.
*A colunista Marta Sfredo está em férias