Estávamos sentados na sala, diante da tevê ligada, rolando um telejornal. A Dora, sete anos recém-feitos, e eu, depois do banho de cada um e já jantados, aquele ambiente agradável de fim de dia comum. Lá para dentro de casa estavam a Julia e o Benjamim, a Dodó atenta ao jornal, eu dividindo a atenção, porque manuseava um livro, comprado naquele dia mesmo – o prezado leitor, se for leitor usual, imagina agora mesmo o prazer quase sensual de abrir pela primeira vez aquelas folhas, sorvendo discretamente o cheiro e vibrando com o livro em si, sua objetividade, seu peso nas mãos, a força de suas palavras, e com o livro em mim, os efeitos dele na minha imaginação, que antegozava já o passeio que ele me proporcionaria em seguida, uns dias depois, em algum momento enfim.
(Leitores contumazes compram livros e sempre supõem ter tempo para lê-los. Não é verdade que tenhamos esse tempo todo, mas isso não importa, ou importa pouco. A posse de um livro desejado tem algo de transcendental, porque nos conecta com a potência da inteligência, perdão pela rima, com a potência da vida futura: eu, de posse deste livro aqui, sou aquele que vai estar lá, em algum ponto dos dias por vir, e sou este que está agora aqui, eu sou os dois – e sou três, porque ao lê-lo vou também estar naquele outro tempo que o livro vai me sugerir, vai me impor: o tempo de um romance, que ocorre lá quando o autor imaginou e vai se transformar num tempo inédito para a minha vivência de leitor, por vicária que seja; o tempo de um ensaio ou dos poemas, quando somos fisgados para cima, para outra dimensão, vivendo na prática a suspensão do fluxo da vida cotidiana.)
Nada disso passava na minha cabeça, eu simplesmente estava ali feliz, quando ela pergunta para o ar: "Como é que vai ser quando chegar a minha vez?". Caio das nuvens, mais perigoso do que de um andar alto (Machado dixit), e pergunto: o que é, filha? "Olha ali, pai", e aponta para a tela, onde estava estampado um gráfico sobre desemprego, o locutor desfiando números que sugeriam o horror. Sim, há tanta gente desempregada, estamos em recessão – mas o que minha filhota de sete anos tem a ver com isso?
Ensaiei uma conversa pacificadora. Tentei não diminuir o problema social, mas quis sinalizar que... O quê, mesmo? Que ela, estudante de escola particular, filha de classe média confortável e formada, terá menos dificuldades, é aliás bem provável que para ela haja emprego em qualquer situação?
Tudo isso cruzou rápido pela minha cabeça, mas não saiu em forma de palavras. Tentei sorrir, fiz um carinho na mãozinha dela. Tudo se abrandou, e eu voltei ao livro, ela se manteve acesa na tela. E escuto, em seguida: "2017 vai ser o pior ano da minha vida!". Sim, exatamente essa frase, até com a exclamação. Mais uma vez pergunto: o quê, filha? E ela só aponta, com o controle remoto, para a tela. E lá mais um pequeno show de horrores – inflação, recuo na produção, corte no orçamento para educação e saúde, caos na segurança pública, extinção assassina das fundações estaduais de pesquisa –, desses horrores que a gente aprende a relativizar, a partir dos 10?, 15?, 20? de quantos anos?
Minha filha está crescendo num país ruim, num tempo horroroso, de crise econômica e social e governos mentirosos, fracos e ao mesmo tempo prepotentes. Nesses tempos, o horizonte se encurta e ficamos reféns do presente.
Dia seguinte li uma reportagem (na aeon.co) sobre as diferenças entre uma vida feliz e uma vida "meaningful", significativa. E melhorei de astral: entre outras coisas relevantes, um dado é essencial para uma vida fazer sentido – conectar passado e futuro com o presente. Não se trata de fuga: é uma busca.