A maior parte dos discos de cantoras feitos hoje no Brasil tem muitos instrumentistas e repertório eclético. Só de tempos em tempos aparecem gravações de voz e piano ou voz e violão. A raridade de Invento +, com Zélia Duncan e Jaques Morelenbaum interpretando Milton Nascimento, começa por aí: é totalmente voz e violoncelo – não lembro de outro assim. O resultando é impactante, transformando a homenagem em obra de arte instantânea e definitiva, será sempre lembrada pelo que traz de novidade, arrojo e afeto. A sofisticação a serviço da simplicidade e vice-versa. O álbum começou a nascer em 2015, quando o lendário André Midani os convidou para um show juntos com músicas de Milton na série que ele produzia no Rio.
“Milton foi um dos que me fizeram querer cantar, fui uma adolescente louca por ele”, disse Zélia em uma entrevista. O encarte do álbum tem um texto dela sobre o atual momento do mercado musical no país. Trecho: “Pra que isso? Vai tocar no rádio? Quem vai ouvir? Não importa. Vai ser o que der, mas quem ouvir terá nas mãos um momento de mergulho profundo”. Em outra entrevista, resumiu: “Quando começamos a lidar com essas músicas não se esperava que o Brasil fosse andar para trás nessa velocidade de 7 a 1. Milton fala do Brasil, da mulher, da luta. Neste momento tão sombrio, o país está precisando dessas músicas como se tivessem sido feitas ontem”. Invento + talvez seja o mais belo tributo já dedicado ao compositor, belo e único.
Zélia exerce poder próprio, você não fica lembrando Elis, por exemplo. A combinação de sua voz grave com a orquestra que está no cérebro e no cello de Morelenbaum, redimensionando canções que já estão em nosso inconsciente coletivo leva o ouvinte a uma sensação de epifania. O roteiro tem clássicos de Milton (com Fernando Brant e Ronaldo Bastos) e clássicos de outros criados ou recriados por ele. No primeiro caso, O Que Foi Feito Devera, Ponta de Areia, San Vicente, Caxangá, Cravo e Canela, Encontros e Despedidas, Canção Amiga, Travessia, Cais. No segundo, O Que Será (Chico Buarque), Calix Bento (Tavinho Moura), Mistérios (Joyce/Maurício Maestro), Volver a los 17 (Violeta Parra) e Beijo Partido (Toninho Horta). Que disco!
INVENTO +
De Zélia Duncan e Jaques Morelenbaum
Biscoito Fino. Edição especial com 14 colagens do artista plástico Nino Cais, 300 exemplares numerados, à venda só no site da gravadora, R$ 120. Edição normal, R$ 29,90.
Xenia França canta o orgulho de ser negra
Revelada pela poderosa bandona paulista Alafia, a cantora Xenia França é um furacão prestes a envolver o Brasil. O passo inicial é Xenia, seu primeiro álbum, trabalho de alta voltagem, que reverencia o som que vem da diáspora negra. Uma mistura de música orgânica e eletrônica alimentada por ritmos/gêneros como ijexá, samba, hip-hop, rhythm’n’blues, rock – ela cita como influências Michael Jackson, Stevie Wonder, James Brown, Lauryn Hill, Gilberto Gil, Elza Soares, Carlinhos Brown e os blocos afro de Salvador, onde nasceu. Mais recentemente, a música cubana. Pode-se dizer que os três pilares poéticos do disco, produzido por Lourenço Rebetz e Pipo Pegoraro, são a luta contra o racismo, o feminismo e o orgulho da negritude.
Xenia mudou-se para São Paulo em 2004, cantou na noite, e em 2011 ajudou a formar a Aláfia. Sua voz de timbre suave (lembra a de Céu) contrasta com a força das músicas, de vários autores. “O disco é sobre intimidade comigo, dores, questionamentos e inquietações”, diz. “É sobre ancestralidade, respeito, amor, cura e fé. É sobre ser mulher. Mulher negra.” A primeira faixa, Pra Que Me Chamam?, dela e Lucas Cirillo, vale como sua apresentação, assim como Minha História, de Tibless. De Chico César, ela traz a conhecida Respeitem Meus Cabelos, Brancos. Tiganá Santana assina Do Alto, canção de espírito religioso. Percussão forte e programações marcam a maioria dos arranjos. Xenia França veio para ficar. Ainda vamos ouvir falar muito dela.
XENIA
De Xenia França
Natural Musical, R$ 25. Informações contato@agogocultural.com.br
ANTENA
VINHA DA IDA
De Lívia Mattos
Conhecida como acordeonista da banda de Chico César, a baiana Livia Mattos emerge como o maior nome feminino do instrumento no Brasil. Toca muito. E neste primeiro disco mostra-se também compositora sólida e cantora de voz linda, aberta e colorida. Já na primeira faixa, o baião pop Vinha da Ida, ela estabelece comunicação direta com o ouvinte. "É um disco de quem vive de estrada, de quem pressupõe que existir é ir", escreve o maestro Letieres Leite, da Orquestra Rumpilezz. Lívia vem participando de festivais internacionais de acordeom e ainda tem um lado de artista circense. A partir de um grupo básico de acordeom, violoncelo, bateria e tuba, o álbum se amplia com outras sonoridades e quase sempre na direção da música dançante, alegre, em xotes, frevos e baiões. Entre os convidados, Chico César, Toninho Ferragutti e Zé Manoel. Produção de Alê Siqueira. Natura Musical, R$ 25. Contato info@liviamattos.com.
TRETA
De Marcia Castro
Quando lançou o primeiro CD, em 2007, Marcia Castro foi saudada como um novo nome da MPB e do samba da Bahia. Hoje tudo está mudado. Ao fim de um casamento de 10 anos, ela é outra: em Treta, quarto álbum, mergulha nos beats dançantes de forma quase radical. Quem gostava dela antes critica. Quem gosta agora incentiva – e os likes nas revistas e sites de música eletrônica prosperam. Citando inspirações em Beyoncé e Rihanna, Marcia está na moda, com suas letras de mulher livre, como “a mina é gulosa, é uma rata/ o que vier na rota ela traça”. Uma das melhores faixas é a power Baba no Quiabo, letra de Ava Rocha na parceria. Outra, Noites Anormais, pegação em vídeo com Cleo Pires, bomba no Youtube. Mas estas poucas linhas ficam devendo para resumir a história eletropop que passeia por funk, hip-hop, rock e ritmos afrobaianos destramados por músicos à altura. Vale! Selo Joia Moderna, R$ 25.
SIMPLESMENTE VITAL
De Alba Maria
Uma das cantoras mais conhecidas do Pará, com carreira desenvolvida em teatros e na noite, Alba Maria demorou 30 anos para lançar este DVD + CD em que interpreta canções do conterrâneo Vital Lima. Escolheu Vital para marcar esse tempo, por ser um dos compositores mais presentes em seu repertório e um patrimônio da música paraense – ele começou nos anos 1970 e teve destaque nacional nos 80, em festivais e discos, com parceiros como Hermínio Bello de Carvalho e o conterrâneo Nilson Chaves. Para o álbum, Alba selecionou 15 canções românticas, deixando de lado os ritmos mais fortes da região. Gravado ao vivo, com músicos competentes, o álbum chama a atenção para a qualidade da cantora e a consistência da obra de Vital, que faz participação especial. O público canta junto em vários momentos. Selo Na Music, CD R$ 25, DVD R$ 30.
Os álbuns aqui comentados estão disponíveis nas plataformas digitais.