Todas as imagens vão desaparecer. É com essa frase que Annie Ernaux, ganhadora do último Prêmio Nobel de Literatura, abre seu livro Os Anos (editora Fósforo, tradução de Marília Garcia). A frase é uma sentença contundente, dura e sincera. E este será o tom da obra: um levantamento memorialístico e autobiográfico entre fotografias, objetos familiares e imagens feitas de palavras, como por exemplo: “Molly Boom deitada ao lado do marido”, “Scarlett O’Hara arrastando pela escada um soldado ianque que ela tinha acabado de matar”, “Os slogans, pichações nos muros das ruas e paredes”, “Poemas e histórias indecentes”. Nada permanecerá, reflete Annie.
Tudo que é grave, comezinho ou especial hoje, em nossas vidas, desaparecerá em duas ou três gerações. Nada ficará. Pois o que sabemos sobre as angústias íntimas de nossos avós e bisavós? O que sabemos sobre suas paixões? Que decepções, que sofrimentos, que alegrias eles tiveram? O que de suas existências subjetivas, para além de histórias anedóticas ou trágicas, restou e chegou até nós? Pouca coisa ou quase nada.
Uma das reflexões mais interessantes de Os Anos é a aceitação de que, daqui a algum tempo, nós também seremos uma mera lembrança presente nas cabeças de nossos filhos, netos e bisnetos “e de gente que ainda nem nasceu”. Seremos apenas um fio de memória e lembrança longínqua e frágil, sem a força da vida pulsante.
Annie Ernaux é, sem dúvida, uma das principais escritoras de nosso tempo. Sua capacidade de reflexão, aliada a uma escrita precisa e elegante, nos revela uma profunda sensibilidade ao mesmo tempo íntima e social, pois em Os Anos, por exemplo, Annie traça um panorama de acontecimentos históricos como a Guerra da Argélia, o nascimento da sociedade de consumo e o 11 de Setembro. Registra ali suas impressões subjetivas de maneira sensível e filosófica.
A questão é que, no fim das contas, Ernaux nos revela que viver é algo incomum. E este me parece o grande paradoxo. Porque, mesmo que uma pessoa não tenha feito nada de especial ao longo da vida, nada que tenha merecido um grande reconhecimento, nada que seja digno de medalhas e honrarias, chegar aos 80 anos, por exemplo, já é por si só um feito extraordinário. Pois quem suportaria tantos anos convivendo com a precariedade, com as humilhações, doenças e injustiças, com perdas, ressentimentos e amores frustrados e, ainda assim, continuar gostando da vida? Sim, viver é incomum. Obrigado, Ernaux.