Já era madrugada do dia 23 de abril, dia de São Jorge, quando a Beija-flor entrou na avenida. As arquibancadas lotadas. Os carros alegóricos enormes e luminosos. Desfilei com minha fantasia entre os foliões, entre os organizadores, entre toda gente feliz após dois anos sem Carnaval. Enquanto escrevia esta coluna, tentei recuperar o sentimento que tive ao pisar pela primeira vez na Sapucaí.
A convite da Beija-flor, eu e mais outros escritores negros desfilamos como homenageados na ala "A Nossa Academia Brasileira de Letras", cujo samba enredo era "empretecer o pensamento". Vínhamos na frente do carro alegórico "Escrevivência", em homenagem à escritora Conceição Evaristo.
Grande parte das escolas de samba do Rio de Janeiro, do Grupo Especial, levou para a avenida reflexões sobre as culturas negras e africanas. Entre orixás, exus, artistas, intelectuais e escritores negros, os desfiles revelaram a urgência de ampliarmos a nossa visão identitária sobre o Brasil, como mais um modo de lutar contra o racismo.
Quebramos estereótipos há muito tempo. Para quem não sabe, ou não quer ver, colocar um samba-enredo na avenida requer, antes de tudo, muito estudo e pesquisa acadêmica. Mestres, doutores e pensadores negros sempre estiveram entre os integrantes das escolas de samba. Além disso, acreditar na separação entre as manifestações do corpo e o trabalho intelectual é uma visão colonial e atrasada.
Numa visão das culturas de matriz africana, o pensamento não está isolado em uma torre de marfim, pelo contrário, pois para fazer sentido existencial, o pensamento passa necessariamente pelo corpo. O pensamento é o corpo. Com todo seu esplendor e limitações. Não somos apenas uma ideia. Somos a corporeidade do pensamento. Uma simbiose entre afeto, corpo e intelecto. Quem é do Carnaval sempre soube disso.
O Carnaval está a anos-luz da civilização branca e eurocêntrica. O Carnaval é a nossa salvação. Ingênuo daquele que acha que a folia é alienada. Nossa resistência é a alegria. Porque sempre nos quiseram tristes. Sempre quiseram apagar nossa cultura e o nosso riso com violência e racismo, entretanto, nós voltamos. Como onda solta. Com inteligência, produção intelectual e felicidade. Como no samba-enredo da Beija-flor, "nosso pensamento saiu da área de serviço". Ocupamos a sala de jantar. Ocupamos a casa toda, e convidamos a partilhar do nosso conhecimento e da nossa alegria.