
Existe uma diferença entre apitar com o livro de regras embaixo do braço e interpretá-lo com o bom senso de considerar o contexto de uma partida de futebol. Um bom exemplo disso foi o lance do primeiro gol da vitória por 2 a 1 da Seleção Brasileira contra a Colômbia, nesta quarta-feira (23), pela Copa América.
Levando em conta a frieza da regra, não se pode dizer que o árbitro Néstor Pitana errou ao permitir que o lance continuasse depois que a bola bateu nele na origem da jogada do gol de Roberto Firmino. Ao mesmo tempo, isso não quer dizer que a situação não deva ser analisada de forma mais ampla por toda complexidade que está envolvida na interpretação.
Há três circunstâncias em que a bola é considerada fora de jogo depois de bater no árbitro, de acordo com o livro de regras:
1) A bola bate no árbitro e "uma equipe começa um ataque prometedor".
2) A bola bate no árbitro e "entra diretamente no gol".
3) A bola bate no árbitro e "a posse passa para a outra equipe".
Sempre que uma das situações acima acontecer, o juiz deve interromper com o apito e recomeçar o jogo com bola ao chão. Levando em conta o primeiro gol do Brasil, podemos descartar os itens 2 e 3, mas deixamos o número 1 em aberto.
Precisamos olhar a consequência da batida da bola no árbitro Néstor Pitana e responder à seguinte pergunta: esse toque gerou um ataque prometedor? A resposta será o "x" da questão para saber se o gol foi legal ou não.
Vamos por partes. Depois do passe de Neymar, a bola sobra para Lucas Paquetá. O camisa 17 da Seleção Brasileira está de costas para a meta adversária e cercado por marcadores. Se pararmos a imagem neste instante, a resposta para essa pergunta será de que não houve um ataque prometedor imediato como consequência da batida da bola no juiz. Parece simples, mas o futebol não é algo simples. É bem complexo.
Se voltarmos ao momento em que a bola está com Neymar, o passe que esbarra em Pitana foi defeituoso. A bola tinha a direção de um jogador colombiano. Se não batesse no juiz, cairia no pé de um adversário.
No entanto, caiu nos pés de Paquetá. E bastou um toque na bola para que o ataque prometedor fosse construído com o passe dado para Renan Lodi, que colocou a bola com mais um tapa na cabeça de Firmino. O atacante desviou e ainda contou com a falha de Ospina. Gol do Brasil.
Creio que, dentro da complexidade que há na interpretação das regras, não se pode deixar de levar em conta o espírito da construção do texto. Quando a regra foi alterada, impondo o bola ao chão para situações em que a bola bate no juiz, isso aconteceu para proteger o espetáculo de situações constrangedoras.
Afinal, ninguém aceitaria normalmente a neutralidade do juiz quando a bola batida nele acabava dentro do gol. Todo mundo diria que houve uma lambança. O mesmo vale para uma bola batida no juiz que muda completamente de rumo e resulta em um impacto no placar de uma partida. Não tinha nada de neutralidade. Era uma trapalhada e tanto. Foi por isso que o texto da regra mudou e a bola ao chão apareceu como salvação para evitar a bagunça em situações como essa.
Só que o texto sempre muda com o objetivo de preservar a dinâmica do jogo. É por isso que nem toda bola que bate no juiz é sinônimo de bola ao chão. Vamos voltar ao espírito da regra. Digamos que a bola está com o zagueiro, bate no juiz e cai no pé de um volante do mesmo time em uma zona morta do campo. Qual o sentido de parar o jogo para dar um bola ao chão? Nenhum. Então, a exceção à regra serve para isso. Para não tirar a agilidade do espetáculo.
No momento em que a bola bate no juiz em uma zona de perigo, tudo está prestes a dar errado a qualquer momento. E foi exatamente o que aconteceu no jogo do Brasil contra a Colômbia. Deu errado.
A bola batida em Pitana afetou a dinâmica defensiva da Colômbia. Impactou na marcação. A defesa fez menção de parar a jogada. Houve uma situação prometedora quase que imediata. O juiz conduziu muito mal o lance levando o apito à boca e não apitando. Isso tudo passou uma sensação de insegurança enorme para a decisão tomada. Ou seja, o procedimento adotado pelo juiz foi ruim.
A melhor coisa que Pitana poderia fazer era usar um recurso da regra criado justamente para protegê-lo em situações como essa. Se ele tivesse apitado para interromper o jogo e reiniciado o jogo ali com bola ao chão, o lance cairia no esquecimento e esse enorme texto nem precisaria ter sido escrito. Ninguém lembraria de uma jogada como essa depois da partida.
Ainda que na frieza do texto da regra, eu consiga ver a brecha que indica o acerto, entendo que a forma como ocorreu a tomada de decisão de Pitana feriu o espírito de uma alteração do texto que veio para trazer melhoras para o futebol. Por isso, considero que o experiente juiz argentino não tomou a melhor decisão no campo.