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Chama-se racismo estrutural a causa do assassinato de João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos agredido de forma vil e covarde por um segurança e um PM temporário, fora de serviço, ambos brancos, no supermercado Carrefour do Passo D'Areia, em Porto Alegre.
Enquanto um segurava as mãos, o outro desferia socos na cara e na cabeça sem parar, freneticamente, até a asfixia. Nada do que João tenha feito no caixa do supermercado, se é que fez, justifica tanto ódio. É como se as consequências do uso extremo da violência contra negros fossem menos graves ou levadas em conta em conta do que para brancos.
Episódio muito parecido ao de George Floyd, norte-americano asfixiado no chão, indefeso, por um policial branco. As cenas de Floyd globalizaram o "Vidas Negras Importam" como coração da luta antirracismo, para além das campanhas discursivas e faixas bonitas.
Os agressores do Carrefour foram presos e são suspeitos de homicídio doloso. Vídeos que mostram o espancamento dele circulam nas redes sociais e ganharam o planeta. Se você não viu, veja. É revoltante, de embrulhar o estômago, mas fechar os olhos como se não fosse problema seu é o pior caminho. O racismo estrutural tem de ser combatido para além da investigação, julgamento e prisão dos assassinos de crimes raciais. E no futebol, como se manifesta? De várias formas.
Primeiro, a ponta do iceberg: cargos decisórios. Dos 60 clubes da Série A, apenas um tem um presidente negro, o funcionário público Sebastião Moreira. Nas casamatas, um técnico: Jonilson Veloso, da Jacuipense (BA). Nas quatro chapas que concorrem à presidência do Inter, quantos são negros? E na atual gestão do Grêmio? E dos outros clubes? E nas redações dos jornais, conselhos de administração empresariais, escolas privadas e Congresso Nacional?
A meritocracia é uma falácia na questão racial brasileira. É um instrumento de manutenção do preconceito por que exibe uma penugem democrática. Só se pode exigir o império do mérito de indivíduos ou grupos com igualdade de condições. E, nessa corrida chamada Brasil, a população negra largou quase 400 anos depois.
Até 1888, o Brasil era escravo. Lembre-se disso. E, mesmo com a abolição, a realidade de quase nenhum direito legalmente ganhou a vitamina da desigualdade econômica. Não é tão difícil assim de enxergar o abismo social que isso produz. Portanto, sem políticas de inclusão, as percepções, lógicas e sentimentos que embalam o racismo estrutural seguirão produzindo tanto a ausência de negros nos postos de comando do futebol quanto o crime do Carrefour.
Exemplo
Nos EUA de Floyd, o ativismo no esporte é muito mais engajado do que no Brasil. Os Panteras Negras inspiraram Tommie Smith e John Carlos, ouro e bronze nos 200m da Olimpíada do México, em 1968. Eles ergueram o punho com uma luva escura, no pódio. Naquele mesmo ano, Martin Luther King era assassinado.
Antes, em 1965, Malcom X teve o mesmo fim. Tommie e John restaram expulsos da Vila Olímpica. Muhammad Ali, gênio do boxe, lenda do esporte e da luta contra o racismo, perdeu seu cinturão em 1967 por se negar a lutar na Guerra do Vietnã. O racismo estrutural segue nos EUA, mas agora LeBron James, quando ergue a voz, em vez de ser boicotado, é abraçado pelos companheiros, pela própria NBA e patrocinadores. Eis aí um passo gigante. Fosse 1968, talvez perdesse o emprego.
Situação por aqui
Mas por que então, no Brasil, a maioria dos atletas se cala, e movimentos como a Democracia Corinthiana, em 1982, são raros ao ponto de a gente lembrar sempre do mesmo exemplo, o de Sócrates e Casagrande? Eis aí outra perversidade do racismo estrutural.
Nossos atletas cresceram em um ambiente que sempre os segregou. Não só pelas injúrias tratadas como piada ou denúncias carimbadas de "mimimi", mas por uma lógica implícita que atemoriza: se você chegou até aqui pelos próprios "méritos", não vá colocar tudo a perder com radicalismos.
O medo de devolver familiares à vida de pobreza anterior fala mais alto. É compreensível. Condená-los é inverter a lógica, transformando vítimas em culpados. O racismo no futebol não pode ser uma questão negra, mas de nós. O jogador branco também tem de ser cobrado.
Posicionamento
O problema, no Brasil, é que poucos esportistas brasileiros se posicionam para valer, negros e brancos. Isso precisa começar a acontecer. Os clubes, que contam nos dedos os negros em seus conselhos deliberativos, têm de pensar urgentemente em políticas de inclusão sem medo. Cotas? Associar a marca a ações menos cosméticas e mais duras?
Campanhas bacanas e bons slogans são válidos. Antes, nem isso havia. Mas chegamos a uma encruzilhada. Se os clubes não reconhecerem que só discursos e ações educativas são insuficientes, o resultado será o reforço do racismo estrutural que mantém tudo como está. E, quando a alguma explosão vier, não adianta chorar mortes como a de João Alberto.