“Vamos proteger as criancinhas necessitadas”, disse Pelé, logo depois de marcar o seu tão esperado milésimo gol, num novembro como este, em 1969.
Naquela época não havia redes sociais nem WhatsApp nem nada dessas comunicações instantâneas, mas já havia patrulha ideológica. Não com esse nome – o termo “patrulha ideológica” foi criado por Cacá Diegues dez anos depois, referindo-se sobretudo aos julgamentos morais feitos pela esquerda brasileira.
Repare você, que hoje reclama do politicamente correto, como a prática do cancelamento vem de longe (Wilson Simonal que o diga). A diferença, agora, é que não são só as esquerdas que cancelam. As direitas também o fazem com alegria e devoção. Ou seja: não há para onde correr.
Naquele tempo distante, há mais de meio século, Pelé foi criticado já no dia seguinte por sua homenagem às crianças. Chamaram-no de demagogo. Em vez de aproveitar a exposição mundial da sua façanha para denunciar a ditadura no Brasil, fez uma declaração amorfa e inofensiva. Ora, cuidar das criancinhas! Por favor! Com tantos problemas que o Brasil enfrentava...
Pois Pelé estava certo. O maior problema desse país tropical é que o Estado e a sociedade não protegem as crianças necessitadas. Vinte anos depois de Pelé, outro craque, Leonel Brizola, tentou se eleger presidente do Brasil exatamente com esse lema.
— As crianças! — exclamava Brizola com aquela sua típica fala da fronteira gaúcha. — Temos de cuidar das crianças!
Se Brizola e Pelé tivessem sido levados mais a sério, o Brasil não estaria na situação em que está. Porque nenhum governo, de 1969 até hoje, deu real importância aos meninos do Brasil. Nenhum! A educação básica e a escola pública sempre foram secundárias, nesse país.
Lembro do velho Darcy Ribeiro enfatizando:
— Esqueçam os adultos! Pensem nas crianças!
Claro, ele estava exagerando a fim de ressaltar a relevância da sua prioridade. Porque só salvando as crianças você salva uma nação. Em qualquer área.
Se você se preocupa com a segurança, preocupe-se com as crianças, porque é aquele menino abandonado, pedindo esmola na sinaleira, que vai se transformar no adulto que assaltará na sinaleira.
Se você se preocupa com o desemprego, preocupe-se com as crianças, porque só um jovem com bom nível de educação formal conseguirá um emprego digno.
Se você se preocupa com a economia, preocupe-se com as crianças, porque só alguém bem educado e bem empregado se transformará num consumidor que fará a pujança do mercado interno.
Ontem, entrevistamos no Timeline, da Gaúcha, um especialista em segurança alimentar. Ele falou sobre a fome no Brasil. Perguntei se justamente a educação não seria a saída para essa infâmia. Ele tergiversou um pouco, admitiu que eu estava certo, mas não parecia conclusivo. Preferiu falar dos programas sociais do governo. Ouso dizer que ele estava equivocado ao ser evasivo. Porque também a fome você resolve na escola integral, que oferece quatro refeições por dia.
Pelé, tão desprezado pela intelectualidade brasileira, Pelé, com sua sensibilidade e sua experiência no meio do povo, Pelé sabia mais de Brasil do que todos eles. Pelé sempre esteve certo.