Há uma pergunta que deveríamos estar nos fazendo:
É uma questão decisiva, se quisermos viver em harmonia.
Porque, afinal, estamos falando de 140 milhões de pessoas em cada ponta da América. Legiões de seres humanos que votaram em candidatos inusuais, exóticos à tradição política. Ambos são agressivos, grosseiros, birrentos e fazem declarações no mínimo pouco confiáveis. Ambos são notoriamente machistas, beirando a misoginia, dados a manifestações xenófobas e não são o que se poderia chamar de amigos da comunidade LGBT.
A conclusão rasteira seria de que seus eleitores são como eles. Alguém extremamente simplista diria que esses 140 milhões de seres humanos são homens brancos, heterossexuais, ricos e ressentidos com os avanços progressistas da sociedade.
Mas não é assim. Trump e Bolsonaro têm muitos votos entre negros, gays, mulheres e pobres. Nesta eleição, Trump ganhou mais votos da comunidade afrodescendente do que qualquer outro candidato republicano nos últimos 60 anos. Sua votação cresceu não apenas entre os negros, mas também entre as mulheres e os latinos. Já entre os homens brancos, com formação superior, a votação de Trump caiu brutalmente. Nesta faixa do eleitorado, sua diferença para Hillary foi de 31 pontos em 2016, e agora, para Biden, desceu para 18 pontos. Entre os homens brancos sem formação superior a queda também foi vertiginosa, de 11 pontos. Quer dizer: foi o deslocamento de votos dos homens brancos que elegeu Biden.
É preciso entender por que tanta gente, de tantos extratos sociais diferentes, votou em Trump. É preciso descobrir qual é o anseio dessas pessoas. Porque a massa de eleitores de Trump não irá embora dos Estados Unidos. Trumpistas e não-trumpistas continuarão convivendo, assim como convivem e conviverão, no Brasil, bolsonaristas e não-bolsonaristas.
Essas pessoas não são más. Elas não têm, necessariamente, os mesmos defeitos de Trump e Bolsonaro. Mas Trump e Bolsonaro as representam porque dizem algo que elas gostariam de dizer. E esse “algo” não é uma afirmação; é uma resposta.
É uma reação.
A dialética hegeliana explica. Você sabe como funciona: há uma tese e, de repente, formula-se contra ela uma tese que lhe é radicalmente oposta, chamada de antítese. Essas duas ideias contrárias ficam se confrontando até que, do conflito, surge uma nova tese, um caminho do meio entre uma e outra, ao que se dá o nome de síntese. Essa síntese, uma vez consolidada, torna-se uma nova tese, contra a qual se oporá uma nova antítese, das quais surgirá uma nova síntese. É assim que o mundo evolui, de acordo com Hegel.
Acredito nessa fórmula, embora as sutilezas do mundo não a tornem tão matemática. Bolsonaro e Trump expressam, sobretudo, a antítese à tese do politicamente correto. Só que temos de levar em conta as tais sutilezas. Porque os eleitores deles não estão dizendo que querem ser preconceituosos ou que querem discriminar seus semelhantes, não estão dizendo que são contra pobres, imigrantes, mulheres, gays e negros, até porque entre eles há pobres, imigrantes, mulheres, gays e negros. Essas pessoas estão dizendo que elas também são cidadãs, que o país também pertence a elas e que o julgamento moral as está incomodando. Em resumo, estão dizendo o mesmo que dizem os defensores do politicamente correto.
Qualquer pessoa sensata é contra a discriminação, é contra o preconceito e entende o sofrimento das minorias. Qualquer pessoa sensata, portanto, pode ser chamada de politicamente correta. Mas o grito dos insatisfeitos mostra que chegou a hora de atenuar o debate moral. É hora de tolerar, é hora de conversar. É hora de compreender que, pensando ou não da mesma forma, todos vamos continuar vivendo juntos.