Em meio às discussões envolvendo a obra que pretende encaminhar esgoto tratado desde uma estação em Xangri-lá até a bacia do Rio Tramandaí, no Litoral Norte, especialistas apontam uma alternativa que teria menor impacto ambiental. Trata-se da construção de um emissário submarino, sistema utilizado para dispensar os efluentes em alto-mar. Sua implementação, contudo, não é um processo simples.
A obra da Corsan foi iniciada em março e, desde então, vem sendo questionada por grupos que alertam sobre o risco de contaminação das águas. A tubulação levará efluentes desde a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) II, em Xangri-lá, até o ponto de descarte final da rede, na bacia do Rio Tramandaí. A companhia garante que o esgoto é 100% tratado e que a construção atende a todas as normativas previstas pelas leis ambientais.
Houve protesto e diferentes reuniões relacionadas à obra. No início deste mês, uma decisão judicial suspendeu a construção da tubulação — situação que foi revertida em 11 de setembro, com um deferimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Os trabalhos foram retomados no dia seguinte e seguem normalmente — exceto em dias de chuva forte —, segundo a Corsan.
O engenheiro agrônomo Carlos Todeschini, membro do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí e representante do Movimento Unificado em Defesa do Litoral Norte Gaúcho (MOVLN), esclarece que o grupo é contrário ao lançamento de efluentes no manancial da bacia devido ao risco de contaminação das águas. Esse perigo existe porque nenhum tratamento é capaz de retirar 100% das substâncias contaminantes do esgoto.
Conforme o especialista, que já foi diretor do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) e secretário municipal de Meio Ambiente de Canoas, é por isso que o grupo avalia que a construção de um emissário submarino seria a melhor opção para reduzir o impacto ambiental:
— A alternativa que o movimento aponta como de menor impacto ambiental é fazer esse lançamento através de um emissário submarino, em local a ser estudado e definido, em que o volume de água do mar, somado ao cloro em suspensão que tem lá, possa fazer o controle desses poluentes remanescentes. Dessa forma, em um grande volume de água, com águas muito agitadas, em um ponto onde não traga impactos, esse lançamento pode ser feito.
Darci Campani, conselheiro da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também defende a construção de um emissário submarino, argumentando que o oceano tem mais capacidade do que o rio de diluir os poluentes orgânicos persistentes. O docente comenta, ainda, que a bibliografia sobre esse sistema é antiga e que o método não requer muito desenvolvimento tecnológico — a tecnologia é mais necessária antes, no tratamento dos efluentes.
— Imagina lançar um litro de esgoto tratado em um riozinho que tem a vazão de cem litros por segundo. Agora imagina lançar isso em um oceano que tem vazão de 100 milhões de litros. É uma diluição muito maior. Então, o volume de água que tem no oceano e as condições químicas que ele tem para degradar essas substâncias tornam mais fácil do que aqui dentro do sistema lagunar — reforça Campani.
Um emissário submarino é uma estrutura hidráulica linear formada, basicamente, por três componentes: a estação de lançamento, que fica na parte terrestre, o emissário, que transporta o efluente até o local de lançamento em um corpo de água, e o sistema difusor, onde um orifício ou bocal dispersam o material.
Em nota, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) resumiu que os emissários oceânicos são tubulações que conduzem os esgotos, após o tratamento adequado, para serem lançados em alto-mar. Conforme o órgão, a solução pode ser adequada quando outras alternativas forem inviáveis ou não suportarem as vazões de projeto. O modelo é utilizado em cidades litorâneas com alto volume habitacional, como Rio de Janeiro e Salvador.
A Fepam também informou que adotou uma série de salvaguardas, como “a exigência do estudo de viabilidade de emissário submarino”, ao licenciar a obra da Corsan, que prevê o tratamento do esgoto e seu lançamento gradual e monitorado no sistema lagunar do Litoral Norte.
Durante o estudo, “será analisado o ponto de lançamento (conforme distância da costa e direção de correntes oceânicas), o nível de tratamento (qualidade da água e capacidade de receber esgotos), a profundidade (para melhor dispersão dos efluentes), os materiais adequados para execução e modelagem financeira”. Entretanto, o órgão ressaltou que, atualmente, o sistema licenciado tem capacidade de atender a região “com segurança ambiental”.
Questionada sobre a escolha do modelo implementado na obra, a Corsan informou que a solução em andamento foi proposta por um grupo de trabalho composto por integrantes da Companhia, da Fepam e da Secretaria do Meio Ambiente, em 2020. “Esta alternativa se mostrou a mais viável e segura e integra o plano de investimentos que já estão sendo realizados no Litoral Norte, que somarão mais de R$ 550 milhões até 2033”, explicou a empresa.
Além de destacar que a Estação de Tratamento de Xangri-lá dispõe de tecnologia moderna e monitoramento permanente e que o efluente é 100% tratado, com total eficiência, a Corsan reforçou que a licença ambiental prevê a entrega de um estudo em 2030. “Esta pode ser uma alternativa futura caso o sistema de esgotamento sanitário não comporte ampliações, o que não é o caso por hora. Esse aspecto será monitorado ao longo do tempo”, esclarece a nota enviada pela empresa.
Durante uma reunião técnica realizada em 10 de setembro, na sede da Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), a Corsan disse que, se até 2030 o estudo indicar a construção do emissário submarino, mudará a obra.
— Se puder ser antecipado o estudo, será. Não podemos é paralisar a situação porque achamos que pode ter uma solução melhor. Temos que caminhar porque essa (a alternativa atual) está licenciada e é viável — afirmou a diretora-presidente da Corsan, Samanta Takimi.
O que dizem os especialistas
O oceanógrafo Eduardo Kirinus, que é professor do Centro de Estudo do Mar (CEM) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica que os emissários submarinos são uma alternativa quando não há mais capacidade de tratamento de esgoto em terra. Assim, o resíduo é “expurgado” para o oceano, onde a água salgada é capaz de reduzir uma grande proporção dos coliformes termotolerantes ainda presentes nos efluentes.
Cláudio Frankenberg, professor do curso de Engenharia Química da Escola Politécnica da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), enfatiza que a grande diferença entre o atual sistema da obra e o emissário submarino é a questão da diluição, que é muito maior em alto-mar. Isso ocorre porque o fluxo do rio é menor em comparação com o oceano.
— A questão seria facilitar a dissolução desse material, mas envolve vários fatores. Onde fazer? Qual o custo? Quem vai bancar? Não é uma coisa simples, a manutenção disso não é tão simples. Existem vários pontos a serem levantados. Mas se pensarmos em impacto, seria menor por ter uma diluição muito maior, em um ambiente muito maior em termos de volume e com um fluxo muito grande — explica.
Contudo, se os efluentes forem impactar o Rio Tramandaí, gradativamente também gerariam reflexos ambientais no mar, mesmo que em proporções diferentes:
— Independente de onde a gente descarte esse material, tem que ser o mais próximo da pureza possível. Porque, por mais que seja em alto-mar, tem questões de maré e de fluxos de água, daí vai ter o material que vai sendo deslocado desse lodo, os animais que vão se alimentar disso, que depois vêm para a pesca. Então, se o material não for tratado, o impacto pode ser a curto, médio ou longo prazo, mas existe um impacto.
Kirinus concorda que o tratamento do esgoto é fundamental antes do envio ao emissário e acrescenta que o sistema tem algumas formas de liberação desse resíduo.
— Geralmente, tem difusores que são espalhados pelo emissário para que esse esgoto consiga ser espalhado com uma velocidade maior e que essa mistura com a água marinha seja mais eficiente. Porque a água salgada tem essa habilidade de reduzir uma grande proporção dos coliformes termotolerantes. Então, o uso de um emissário em água salgada é adequado e é utilizado em várias regiões do mundo, mas tem que ter algum tipo de tratamento — ressalta.
O docente da UFPR considera, no entanto, que o impacto ambiental não é menor quando comparado aos métodos convencionais, realizados em uma estação de tratamento de efluentes em terra, por exemplo. Kirinus argumenta que pode haver reflexo na vida marinha. Por isso, destaca a importância da distância do lançamento dos efluentes pelo emissário da costa:
— Quanto mais próximo da costa, maiores serão os impactos. Pode afetar a balneabilidade, pode causar um “boom” de microalgas nocivas, pode causar alteração em microbiomas. Porque o oceano geralmente tem um baixo nível de nutrientes e é nessa zona pobre de nutrientes que vamos adicionar uma carga absurda. Então, é óbvio que vai ter uma mudança na biofauna, que vai possibilitar que ocorra o impacto ambiental.